Blog do Instituto Casa de Autores, uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo é fomentar a leitura e qualidade dos escritores no Brasil.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Chá e livros



Olhei para minha perna, depois para a parede, de novo para perna e mais uma vez para a parede. Acho que eu preciso levantar... mas levantar para quê? Bom, posso fazer um chá. É, fazer um chá parece um bom motivo para abandonar essa comparação entre perna e parede. Água na chaleira, saquinho de chá na xícara, agora é só esperar... Beber chá sempre me traz uma sensação de tranquilidade, ou talvez, melhor dizendo, de que alguma coisa faz sentido: a xícara, a água, o saquinho de chá, o limão, o momento de despejar a água sobre o saquinho, a antevisão do gozo de se sentar com a xícara de chá quente e um livro.

Ah, sim, porque o prazer do chá está intimamente associado ao prazer da leitura. Chá sem leitura seria como leitura sem chá, algo árido e desprovido de sentido. Há, naturalmente, chás adequados aos diferentes tipos de literatura e livros apropriados às diferentes espécies de chá. Se a escolha não for boa, logo se percebe que ou o livro a ser lido não era o que imagináramos ou que o chá a ser bebido não deveria ser esse.

É tremendamente arriscado tentar combinações exóticas, mas às vezes é necessário, pois algumas escolhas são muito complicadas. Por exemplo, o que beber quando queremos ler um livro sobre o último teorema de Fermat? Ou o que ler quando estamos ávidos por um chá de baunilha? Nesses casos em que a dúvida que nos assola pode nos levar à imobilidade e à eterna contemplação de pernas e paredes, recomendo apelar para o chá preto comum.

Eu não poderia me conceber sem esses dois elementos. Muitas das minhas lembranças giram em torno deles. Por exemplo, pouca coisa me lembro de uma viagem feita há tempos para a Turquia, mas me lembro bem dos livros que li, um em particular, e da experiência de beber o forte chá turco, tentando combiná-lo forçosamente com a literatura levada para a viagem. Já me esqueci das pessoas e das situações num escritório onde trabalhei, mas me lembro bem dos chás que eu levava e tomava lá e quão pouco eles combinavam com os processos e relatórios que eu tinha que ler. Aliás, é difícil, senão impossível, combinar um bom chá com a leitura de enfadonhos relatórios, e pior ainda tentar beber um chá da categoria dessa leitura. Nesse caso, a única solução é manter-se firme no chá e abandonar essa nefasta literatura.

Essas e outras experiências me ensinaram a necessidade de viajar, ou mesmo sair de casa, acompanhada de uma diversidade grande de gêneros ou de livros ou de chás. Fizeram de mim também uma pessoa exigente: como não gosto de uma infinidade de chás, não leio uma infinidade de livros; como abomino uma infinidade de gêneros e autores, não bebo uma infinidade de chás. Isso, no entanto, por mais estranho que possa parecer, tem se mostrado, por fim, positivo. Não pude permanecer no escritório que mencionei acima, por exemplo, devido à incompatibilidade entre a leitura e o chá. Em outro trabalho abandonado, apesar do chá frequente e bom, a leitura praticamente não existia e dessa maneira o chá se tornava impossível.

A seleção de uma atividade remunerada deveria se tornar mais fácil, pois há critérios bem definidos para fazê-lo, não é preciso usar outros tão difusos como salários, benefícios, horários, etc. É fundamental que a atividade escolhida comporte chá e leitura; uma vez esse pressuposto atendido, faz-se necessária a compatibilização desses elementos, que, como mencionei anteriormente, pode revelar-se muito complicada. Atividades que se concentram no chá, tais como provadores de chá, membros da Academia Brasileira de Letras ou chá das cinco acompanhada das dondocas da vizinhança, são muito perigosas. O provador de chá, coitado, não tem sequer tempo para descobrir qual é o livro que combina com o chá, antes de passar para um nova amostra, ou seja, temos chá, muito chá, com muita diversidade, mas não temos livros... Como membros da Academia ou num chá das cinco com as dondocas, dificilmente poder-se-á convencer os presentes que devem permanecer calados para que possamos ler ou persuadi-los dos encantos de uma leitura em voz alta. Esse último caso é, naturalmente, muito arriscado, pois a escolha pode ser incompatível com o chá servido, colocando a perder todos os esforços realizados.

As atividades que se concentram na leitura, por sua vez, são muito mais diversificadas: há aquelas que se limitam à leitura de relatórios; outras que abrangem a literatura técnica e aquelas em que se pode, teoricamente, ler de tudo. As primeiras podem ser descartadas pelas razões óbvias já mencionadas anteriormente. As segundas podem ter encantos, dependendo do campo de estudo do indivíduo e de sua habilidade para fazer combinações corretas. Se a pessoa sabe que chá combinar com a leitura do mais novo tratado de biologia molecular ou do mais revolucionário artigo sobre física de partículas, então não há problemas, mas eu, infelizmente, ou talvez felizmente, não possuo tal criatividade.

A última categoria, que parece a mais simpática, é, evidentemente, um engodo: aqueles que trabalham em jornais só leem sobre suas pautas diárias e dificilmente têm tempo para tomar chá; os professores concentram sua leitura em seus temas de estudo e de aulas e dificilmente têm dinheiro para comprar chá; e mesmo os críticos literários devem ler obrigatoriamente certos livros, alguns dos quais sequer merecem um chá. Bom, parece que não é tão fácil assim...


Nurit Bensusan

segunda-feira, 10 de março de 2014

Xadrez nas escolas? Vamos acabar com isso!



O jogo de xadrez é preconceituoso, racista, machista, pervertido, politicamente incorreto.

Já começa assim: brancas de um lado, pretas do outro. Um estímulo à segregação racial. Adivinha quais as preferidas? Brancas, claro, em 92,8% dos casos. E por quê? Porque são privilegiadas. As regras facilitam para elas. Sempre começam o jogo e podem escolher as melhores casas. 

No posicionamento do tabuleiro, casa branca à direita, preta à esquerda. Isso deve ter a mão dos comunistas ou da KKK. Malba Tahan não ousou calcular isso.

Os peões, coitados, subjugados, usados como escudos. Todos com uniforme proletário, não têm identidade própria. Deve ser para que se sintam parte do todo e não indivíduos donos do seu próprio eu. Têm direitos limitados e são os primeiros a ser sacrificados. Bois de piranha. Sociedade injusta, essa. São os únicos que sequer tem o direito de voltar atrás. Têm direito apenas a um passo duplo. Depois são tolhidos, apenas passos curtos lhes são permitidos, limitados, marchando para o sacrifício. Brigam entre eles, acabam sendo aniquilados pelos poderosos, certamente da direita ultrarradical. 

Ao serem comidos, eliminados, ninguém se importa. São jogados numa vala comum e o jogo continua. Menos um peão, apenas isso! Talvez quando o último for eliminado, porque não terão outro para sacrificar e fazer o serviço sujo, é que poderá surgir algum lamento. Nada mais.

É um cargo machista. Não mudou nem com o passar dos tempos. São todos homens, como se a mulher não tivesse o direito de lutar. Nem o feminino é conhecido ao certo: peoa, ou piorra? Na dúvida, deixaram apenas homens.

É um jogo que deveria ser laico, mas não o é. Não respeita a liberdade religiosa, o direito de escolha do próprio credo. Nunca vi um tabuleiro com pastores, pais de santo, rabinos ou xeiques. Só tem bispos. E eles não se entendem. Nada de amor ao próximo. O ódio racial fala mais alto. Ficam fitando as diagonais. Se puderem, se matam, se comem. 

Nesse jogo pode ter nascido a semente da pedofilia na igreja. É bispo comendo peão, comendo bispo, comendo rainha. Se facilitar, comem até cavalo. Quando encurralam o rei, o jogo acaba. Pelo menos o do rei escapa. 

Dizem que certa vez um árabe e um judeu estavam jogando amistosamente uma partida de xadrez, cada um com as peças da sua cultura, substituindo os bispos por xeiques e rabinos. Enquanto estava peão contra peão, primo contra primo, tudo ia bem. Mas até hoje não se sabe se foi quando o xeique quis comer o rabino ou o rabino quis comer o xeique que teria começado a guerra entre eles. As torres de ambos foram movidas dos cantos para a faixa de Gaza e até hoje está confuso por lá.

Os animais também não são respeitados. Trabalham muito, como cavalos, nunca em linha reta. Não raro são enviados para trás das tropas inimigas. E a zoofilia corre solta. É só facilitar e qualquer um pode comer o cavalo, dos peões ao rei. Não escapam nem da rainha nem do bispo. E cavalo come cavalo. Nem pensaram em colocar um casal de equinos para evitar isso. Jogo machista, que estimula o homossexualismo. 

O rei e a rainha até começam lado a lado. Mas nunca mais se encontram. Não há valorização da família. Uma rainha vive de olho no rei da outra. Facilita pra ver. Os reis ficam na deles. Mas se a rainha do outro dormir na casa ao lado, babaus! E tem briga de aranha também. Se puder, a rainha branca come a rainha preta ou a preta come a branca. Enquanto não chegam uma na outra, vão traçando os peões. Eles não têm chance. Dificilmente escapam quando uma rainha os persegue. Assédio sexual explícito. Ela come mesmo, se puder, um depois do outro. Alguns ainda as chamam de damas! Agem como dominadoras, donas do campinho. Assédio moral da pior espécie. Ou seria bullying? 

As torres são símbolo da opressão. Do capitalismo. A elas é dado poder imenso. Valem mais do que os cavalos, do que os bispos. Valem mais do que vários peões juntos. Materialismo puro! Claro que não é à toa. Tudo tem um simbolismo nefasto por trás. 

E às vezes, no meio do campo de batalha, com os exércitos em frangalhos, tabuleiro descoberto, quando um peão atinge a linha final, iludido com a libertação, o rei pensa em luxúria. Poderia pedir mais uma torre, um cavalo, um religioso, mas nem pensa nisso. 
Pede mais uma rainha. Mesmo que a dele ainda esteja no jogo. O rei fica com as duas, se precisar sacrificar uma, não diferencia a primeira da segunda. E o peão que chegou lá? Esqueceu, né? Todos esquecem. Foi trocado, ficou inútil.

Ainda dizem que é um jogo de estratégia, que estimula o raciocínio, que facilita a matemática, o pensar. Não passa de sem-vergonhice, um cenário racista, machista, da burguesia preconceituosa. 

Por essas e outras, deve estar certo quem acusou Monteiro Lobato de racista e pediu para banir o "Sítio do Pica-pau (notem que nome capcioso) Amarelo" (e ufanista) das escolas brasileiras. E eu que tinha tanto carinho pela Tia Anastácia, quase ternura. Descobri que fui manipulado sem perceber.

Falar sobre educação financeira? Hoje não. Sabe-se lá como podem interpretar isso...

Álvaro Modernell