Blog do Instituto Casa de Autores, uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo é fomentar a leitura e qualidade dos escritores no Brasil.

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Sete dias


Às vezes imagino o que os livros de história do futuro vão falar sobre esses dias...
No entanto, sempre tenho certeza sobre o que eles não vão falar.
Mas não estou escrevendo para deixar algum registro da época para gerações futuras – até porque não sei se haverá gerações futuras. Nem escrevo por amor à arte de escrever ou qualquer outro motivo nobre, como fazer uma homenagem àqueles que sei que vão morrer ou coisa semelhante.
Não, nada disso. Escrevo para organizar meus pensamentos. Escrevo para coordenar minhas ideias e tentar, com isso, lembrar-me melhor das coisas que virão.
E se com isso algo coerente acabar vazando para o papel e a História, melhor.
Mas escrevo, somente, para sobreviver.


DIA 1


Acordei – acordei? – sentindo-me estranho naquela manhã de terça-feira.

A cabeça enevoada trazia um tom de irrealidade para tudo, como se eu estivesse apenas parcialmente consciente. O banho gelado não ajudou a dissipar o incômodo.

Enquanto tomava café e me preparava para ir à universidade, revisei mentalmente o que havia feito no dia anterior e o que comera no jantar. As lembranças demoravam a chegar, como se fossem resgatadas de um local distante e profundo, mas mesmo assim tive certeza de que não fizera nada que pudesse justificar aquela sensação.

Na UnB, à medida que as aulas evoluíam, comecei a me sentir mais e mais ansioso, como se algo muito importante estivesse para acontecer, até chegar à última aula do dia – Física 2, onde estudávamos Física Ótica.

O professor havia desenhado um conjunto de lentes de formatos variados no quadro verde, e estava começando suas explicações quando, de repente, eu sabia o que iria acontecer.

Levantei-me e, caminhando quase como hipnotizado, aproximei-me de Leonardo, que como sempre estava sentado na primeira fileira. Por alguns segundos fiquei olhando para sua fronte franzida, como se ele estivesse desenhando mentalmente as lentes e raios, até que, em algum ponto entre seus olhos e o quadro, uma luz começou a brilhar.

Por alguns poucos segundos, a pequena nuvem luminosa cresceu, depois começou a se compactar e tomou a forma de uma lente de gelo, enquanto crescia o alvoroço entre a turma. Mais um pouco e Leo soltou um gemido de exaustão, desmaiando, enquanto a lente caía no chão, estilhaçando-se com um ruído surdo.

Menos de uma hora depois, vídeos gravados por dois celulares de alunos da turma já estavam no Youtube, mas, com a quantidade de vídeos falsos e histórias absurdas circulando diariamente na internet, simplesmente foram engolidos pelo excesso de informações. Eu apareço no canto de um desses vídeos – sou o cara de pé, com jeans rasgados e uma camisa vermelha, que parece estar em transe enquanto olha para a lente se formando.

Quanto aos jornais, a verdade é que a única notícia para eles foi a que um estudante tinha entrado em coma durante a aula e despertado apenas no dia seguinte – ninguém se interessou pelas histórias fantasiosas da turma, supondo ser algum tipo de trote.

Já entre os alunos, inúmeras teorias foram criadas e abandonadas antes mesmo que Leo acordasse. A mais cotada, bem me lembro, era que de alguma forma ele usara seus “poderes mentais” para agregar o vapor d'água do ar (daí a pequena nuvem luminosa) que, sob pressão, mudou de estado até ficar sólido. Agora, como ele havia desenvolvido ou adquirido esses “poderes mentais” ainda era um mistério que continuaria – continua – sem solução.

Provavelmente a história teria caído no esquecimento e se transformado em mais uma lenda urbana, se tudo tivesse acabado por aí.

Mas não acabou.

DIA 2


Dois dias depois eu continuava com aquela sensação estranha, como se não estivesse totalmente acordado.

Na verdade, dizer isso não é preciso. O certo é que, como em um sonho, o tempo parecia “pular”: eu sentia como se nada houvesse acontecido entre o episódio da lente na sala de aula e aquela tarde de quinta. A lembrança de dois dias atrás, estranhamente, era muito mais clara que a do dia anterior.

O trote que vínhamos preparando para os calouros do curso finalmente estava pronto para ser pregado: Fomos à aula de educação física dos calouros, devidamente equipados com “carroças” prontas para a corrida.

Os calouros ficavam encarregados de puxar suas “carroças” – na verdade, plataformas de madeira com rodas de rolimã – por cinquenta metros da pista de corrida do Centro Olímpico da Universidade. A promessa é que aquele que chegasse primeiro seria dispensado dos cortes de cabelo e tintas que seriam aplicados aos demais.

Obviamente, nosso objetivo era não deixar nenhum deles atingir a linha de chegada!

Na pista de corrida, os dez veteranos mais pesados subiram nas carroças e entregaram as cordas para dez “voluntários” puxarem.

Dos dez calouros que começaram a puxar as “carroças”, apenas oito conseguiram tirá-las do lugar. Após cerca de quinze metros, um segundo veterano subiu em cada carroça, e mais quatro desistiram. Mais uns quinze metros e um terceiro veterano subiu, deixando três dos calouros restantes largados ao chão, bufando. Só um continuou, esforçando-se para chegar à linha de chegada, vinte metros à frente.

Um pouco mais à frente, mais um veterano subiu à carroça, se apertando aos demais para caber na apertada prancha de madeira. O calouro, de corpo mediano, se esforçou mais e, animado pela gritaria dos outros calouros, continuou.

Agora, era uma questão de honra não deixar a carroça cruzar a linha de chegada, poucos metros à frente. Como não havia mais espaço na carroça, Pam-Pam – um veterano que, sozinho, pesava mais que quaisquer outros dois juntos – substituiu um dos veteranos sobre a carroça. O garoto bufou, se esforçou e continuou, pé ante pé.

Quando faltavam apenas dois ou três metros, outros dois veteranos se agarraram aos demais sobre a carroça, equilibrando-se para não cair, dispostos a parar o calouro de qualquer jeito. A carroça rangeu e, com um estalo forte, o eixo traseiro quebrou, quase derrubando dois veteranos e forçando o calouro a parar por um instante. Outros veteranos correram para aumentar o peso, fazendo uma algazarra.

Mas o jovem, suando e com o olhar esgazeado fixo na linha de chegada, continuou puxando.

Quando ele finalmente cruzou a linha de chegada, a carroça tinha duas rodas a menos, e quase dez pessoas se equilibravam, umas sobre as outras, na plataforma de madeira. Pelos cálculos que fizemos, alguns dias mais tarde, ele estava arrastando mais de seiscentos quilos sobre a áspera pista de corrida.

Como Jean (esse era o nome do calouro) não tinha nada incomum que saltasse aos olhos – como “superforça” ou algo assim –, na época ninguém ligou esse episódio à materialização da lente em sala de aula dois dias antes. Após a surpresa inicial, sem termos chegado a uma explicação razoável para o que acontecera, as especulações foram deixadas de lado e ele simplesmente virou um herói entre calouros; e mesmo os veteranos respeitaram sua capacidade de não desistir.

Usualmente, ele não tinha força, velocidade ou inteligência além do comum – mas ele sempre conseguia um pouco mais, quando realmente se esforçava. Ninguém pensou que justamente essa capacidade de extrair energia além do limite, quando todos já haviam desistido, era algo além do normal.

Quer dizer, ninguém pensou nisso até a próxima segunda-feira, quando tudo começou a acontecer ao mesmo tempo.

DIA 3


Acho que neste ponto cabe uma digressão, quem sabe algo me vem à mente enquanto tento organizar os pensamentos, resgatando da memória os dias que precederam aquela primeira terça-feira...

Quando tudo começou a acontecer. Era assim que nos referíamos àquela semana quando... bem, quando tudo começou a acontecer!

Conforme os devaneios dos nerds viciados em histórias de ficção científica e em quadrinhos da nossa turma, algo deveria ter acontecido nos dias que precederam a primeira manifestação de “poder” – a criação da lente por Leo. Um meteoro contendo esporos alienígenas teria caído, alguma fenda para outra dimensão teria se aberto ou algum tipo de tempestade cósmica teria atingido a Terra, provocando mutações.

Ainda segundo eles, precisávamos nos precaver, porque em breve apareceriam funcionários do governo tentando nos prender, como se fôssemos algum tipo de ameaça à segurança nacional; ou, quem sabe, um grupo de cientistas de alguma organização desconhecida surgiria para ou justificar o acontecido ou para nos capturar para análise e posterior reprodução de nossas habilidades em larga escala, para vender ao exército do país que pagasse mais.

Bem, até onde eu sei, eles estavam errados em ambas as coisas.

Alguns dias mais tarde, quando descobri o porquê de minha mente estar sempre enevoada e de alguns dias parecerem mais reais que outros, fiz uma pesquisa extensa na internet, em jornais, blogs e até mesmo sites de diversos grupos religiosos e esotéricos. Absolutamente nada diferente aconteceu naqueles dias que precederam a primeira manifestação – pelo menos nada de que a humanidade tivesse se dado conta.

Tentei analisar os alunos das turmas envolvidas, buscando pontos em comum, mas havia gente de toda parte do país, e de outros países, gente que poucas semanas antes vivia a centenas ou milhares de quilômetros de distância. Os estranhos eventos ocorriam apenas com estudantes da UnB, como se algo houvesse sido iniciado daquele ponto, mas o que era, e se ficaria restrito à universidade, ainda não sabíamos.

Quanto ao governo... Bem, eles levaram quase vinte anos para elaborar as primeiras leis sobre a internet; e não seria dessa vez que se tornariam mais ágeis. Nada de cientistas malucos, também, embora diversos de nós tenham demonstrado suas habilidades em diversos laboratórios de universidades e centros de pesquisa do país, quando a área científica finalmente acreditou que não era mais um golpe de mídia.

A mídia... Essa sim, agiu rápido. Em pouco tempo estávamos nos jornais, e já na segunda semana chegavam a nós propostas variadas, desde estrear comerciais e posar para revistas, até o convite para estrelarmos uma versão especial do programa “Big Brother”, em uma casa habitada apenas por pessoas com habilidades especiais.

Mas estou divagando. Divagando sobre o que sei que vai acontecer. O que eu queria dizer é que, naquela segunda, as coisas de repente começaram a acontecer mais rápido.

Logo no início do dia, a Samara – uma bela morena que havia entrado no mesmo semestre que eu – “empurrou” um engraçadinho que estava enchendo sua paciência, sem tocar nele, na área das lanchonetes. O garoto caiu sentado e foi arrastado por uma força invisível por mais de cinco metros, parando próximo a alguns grupos que discutiam os episódios da semana anterior.

Quando uma segunda pessoa – um sujeito que cursava arquitetura, de quem não lembro o nome – descobriu que conseguia influenciar os outros, durante uma partida de truco, alguém levantou a hipótese de que as ocorrências indicavam que algo estava acontecendo em larga escala na universidade.

Bastou a fagulha dessa ideia para uma verdadeira febre se abater sobre todos, cada um buscando, de forma escondida ou explicitamente, descobrir se tinha algum tipo de “poder”.

E de fato alguns outros descobriram que efetivamente conseguiam fazer algo diferente. Nada de coisas “absurdas” (olhe só para mim, falando de absurdo em uma situação dessas!), como fazer o corpo pegar fogo, ficar invisível ou esticar. Mas, definitivamente, coisas fora do normal.

Algum tempo depois, eu e alguns dos outros começamos a perceber um certo padrão nos poderes que se manifestavam, pois todos pareciam de alguma forma associados a faculdades mentais. E, em nossas pesquisas, curiosamente descobrimos que todos os “poderes” pareciam ter precedente entre os milagres atribuídos a “santos” e “gurus” no correr da História.

Mas estou novamente me adiantando. Naquela segunda, que convencionei chamar de “dia 3”, tudo começou.

Mas o que realmente me levou a escrever foram os fatos de hoje; o “dia 4”. O dia em que descobri por que minha mente tem estado enevoada, e o dia em que descobri por que tenho tanta certeza sobre algumas coisas que ainda estão por acontecer.

DIA 4 - Hoje


Hoje, novamente, acordei com aquela estranha sensação de que minha mente estava enevoada.

Tentei me lembrar do dia anterior.

Apesar de o “dia 3” estar bem claro na minha lembrança, precisei de vários minutos me esforçando para tentar recuperar a memória do que ocorrera nas duas semanas seguintes.

Assustei-me quando percebi que dezesseis dias tinham se passado desde aquela segunda-feira. Conferi no relógio, olhando com estranheza a data: quarta feira, 22 de abril de 2009. Mas por que as duas semanas passadas estavam tão enevoadas?

A revelação me chegou como uma luz em um quarto escuro, que cega antes de desvendar. Ainda que eu não soubesse por que, um medo terrível fez doer minha barriga e um calafrio subiu pela espinha, enquanto lágrimas me brotaram nos olhos, sem que eu conseguisse impedir.

Eu estava tentando lembrar para o lado errado! Por isso era tão difícil!

As memórias do futuro me atingiram de forma fragmentária, como se eu estivesse tentando ver algo que continuamente fugisse do meu foco de visão. Quanto mais eu lembrava, maior o medo se tornava, ainda que eu não conseguisse ver ainda o porquê desse medo.

*          *          *

Desisto de ir para a universidade, até porque sinto que não adianta ir lá até que tenha uma ideia clara sobre o que preciso fazer.

Abro a tampa do laptop e começo a escrever, para organizar as ideias, para clarear na mente os últimos dias e quem sabe com isso ajudar a lembrar dos dias que virão.

Às vezes imagino o que os livros de história do futuro vão falar sobre estes dias... No entanto, sempre tenho certeza sobre o que eles não vão falar.

Mas não estou escrevendo para deixar algum registro da época para gerações futuras – até porque não sei se haverá gerações futuras. Nem escrevo por amor à arte de escrever ou qualquer outro motivo nobre, como fazer uma homenagem àqueles que sei que vão morrer ou coisa semelhante.

Não, nada disso. Escrevo para organizar meus pensamentos. Escrevo para coordenar minhas ideias e tentar, com isso, lembrar-me melhor das coisas que virão.

E se com isso algo coerente acabar vazando para o papel e a História, melhor.

Mas escrevo, somente, para sobreviver.

O medo dói em meu estômago enquanto me forço a lembrar dos últimos dias, enquanto me preparo psicologicamente para tentar lembrar dos dias que virão.

Há duas semanas, Pam-Pam, o veterano grandalhão, começou a apresentar estranhos calombos nas costas. Sua mãe o levou a um dermatologista, que verificou que as protuberâncias que se assemelhavam a espinhos eram de um material semelhante às unhas – embora nós achássemos que pareciam mais com pequenos chifres de rinoceronte. Seus cabelos começaram a cair e em uma semana não havia um só pelo em seu corpo. Sua família, assustada, o enviou para uma clínica de oncologia nos Estados Unidos, na esperança de que algum médico possa diagnosticar melhor o que está ocorrendo.

Marco, um calouro que tinha vindo do Rio de Janeiro, estava assistindo a uma aula quando pareceu entrar em transe. Ao fim da classe, quando todos se levantaram para sair, perceberam que ele permaneceu sentado. Alertados já pelos estranhos acontecimentos que vinham ocorrendo, chamaram sua família. Quando seu pai chegou, a turma já havia percebido que ele não estava em transe – apenas se movia muito, muito lentamente. Carregaram-no para uma ambulância e não tivemos notícia dele desde então.

Mas nem todos os casos eram dramáticos. Por exemplo, Míriam, uma nissei extremamente simpática, descobriu que conseguia projetar sua mente com facilidade para qualquer lugar, tendo inclusive visto seus avós no Japão e trazido notícias para sua família. Seus pais estavam orgulhosos, julgando que a “projeção astral”, como chamavam, era uma evidência de que a filha estava transcendendo a matéria e entrando em um estado búdico.

Casos de transes extáticos, empatia, telepatia, bicorporiedade, levitação, transcomunicação, clarividência, transfiguração e outros tantos termos resgatados da literatura religiosa e esotérica pipocavam todos os dias no campus e, embora algumas pessoas tentassem ignorar seus dons e continuar levando vida normal, alguns os viam como pretexto para abandonar totalmente o que faziam e partir em busca de alguma coisa nova.

Estranhamente, mesmo depois de vinte dias desde o episódio com Leonardo na aula de Física Ótica, só os estudantes da UnB eram afetados – nenhum professor, funcionário ou visitante havia demonstrado nada de excepcional.

Ao recordar os fatos das últimas semanas, percebo que não lembro de ter desenvolvido esse dom de lembrar coisas futuras em nenhum momento.

Na verdade, me recordo que minha vida correu de maneira bastante normal nestas últimas semanas, exceto pelo alvoroço que ocorria à minha volta toda vez que alguém começava a levitar, a falar em línguas estranhas ou emitir um halo de luz em volta da cabeça.

Então, compreendo que apenas nos dias em que minhas lembranças estão mais claras – os dias um, dois e três e o dia quatro, hoje – eu realmente lembrei de algo futuro. Mas é mais que isso: nos outros dias, eu nem mesmo me recordava de que havia lembrado de algo futuro!

É quando a verdade, mesmo que ainda incompleta, me atinge com um soco no estômago: minha habilidade não é a de lembrar de coisas futuras como se houvessem acontecido!

Minha habilidade é de projetar minha consciência para dias passados!

Por isso a data me pareceu estranha no início do dia: antes de acordar hoje, eu havia acordado quase dois meses no futuro, em 7 de junho!

Aos poucos, a memória vai retornando, ainda embrenhada em fumaça, e percebo que meu poder não é absoluto: preciso lutar com o cérebro do meu “eu” atual para resgatar as lembranças, sejam do futuro, sejam do passado do dia atual.

Com o medo fazendo subir a bile até minha boca, olho pela janela para o dia que se encerra e finalmente percebo que trouxe duas mensagens bem claras de minhas memórias do futuro:

A primeira, de que algo ruim, muito ruim, vai acontecer caso eu não use as lembranças que ainda não consegui resgatar para mudar determinados fatos do passado.

E a segunda, que tenho apenas sete chances, sete dias onde minha alteração pode fazer diferença.

Lágrimas de medo me escorrem no rosto quando defronto a realidade imutável: o quarto desses dias terminou.

E eu ainda não me recordo do que preciso fazer!



Alexandre Santos Lobão

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Conto de Natal



Meu nome é Severino e tenho 10 anos. Moro num grotão, no interior do Estado... Não importa o nome. Sou brasileiro. Aqui moram 10 famílias e tenho 10 irmãos. Acho que o número 10 me acompanha porque sempre tiro 10 na escola. Pois tem uma escola no meu recanto e a professora anda 10 léguas para chegar aqui. Eu gosto muito de estudar e sou apaixonado com o estudo dos mapas porque eles me mostram que existem mais lugares e pessoas diferentes no mundo. Minha professora é muito sabida. Ela conhece o mundo inteiro viajando pelos mapas. Ela tem muitas fotos de vários países que ela recorta de revistas. Eu nunca vi uma revista, mas me contento com o que ela mostra. Assim, eu conheci o mar, a montanha, as cidades, a neve, os carros, os barcos, os aviões e até homens que voam de cima de uma pedra. É muito legal porque de noite eu fecho os olhos e vejo de novo tudo o que ela mostrou.

Esta semana, a professora falou muito sobre o Natal e mostrou árvores enfeitadas com bolas coloridas, sininhos e estrelas. E tinha até neve. No alto, um anjo de asas abertas sorria pra gente. Ela explicou o que era o Natal, falou do nascimento de um menino pobre numa manjedoura (um lugar onde se põe comida para os animais: as vacas e os bois) e que esse menino tinha vindo ao nosso mundo para salvar os homens. Eu não entendi bem essa parte, mas achei lindo aquele menininho ali junto com os bichos. Ela também explicou que uns reis (homens com coroa na cabeça) levaram presentes para o menininho.

Nossa professora explicou que, hoje, no lugar dos reis, existe um velhinho de barbas brancas, chamado Papai Noel, que dá presentes a crianças no mundo inteiro. E que ele não consegue presentear todas as crianças. Só que ela não explicou isso direito. Eu até vi a foto dele. Parece boa gente. E anda num negócio chamado trenó puxado por uns bichos parecidos com cabras de grandes chifres

Ela inventou uma brincadeira conosco: a gente fechava os olhos e imaginava o velhinho dando presentes para nós; figuras de bicicletas, carrinhos, bolas, bonecas, roupas, sapatos e livros: muitos livros para ler. Fiquei feliz com meu presente: a figura de uma bicicleta. De noite, apaguei a lamparina e sonhei com meu Natal: montado na minha “bicicleta”, fui ao encontro de Papai Noel. Ele me perguntou o que eu queria. E eu respondi que queria de presente uma resposta à minha pergunta: “Você conhece as crianças pobres do Brasil?”


Elba GGomes

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Girassol



Todo mundo me dizia
Que o lindo girassol
Assim era chamado
Porque gostava do sol

Um dia fui conversar
Com aquela flor amarela
- Girassol, conte a verdade
Você gira em torno do sol?

E antes que a flor falasse
Linda como aquarela
O sol saiu de uma nuvem
E respondeu cheio de amor:
- Eu é que acompanho a flor
Pois sou apaixonado por ela

Elba GGomes

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Instantâneos – Momentos de Dor IV


12. De manhã, quando ela abriu o Facebook estava lá a mensagem dele pedindo amizade. Depois de trinta anos, sentiu o mesmo palpitar no coração, o mesmo arrepio na pele. Respirou fundo e apertou a tecla deletar.

13. Ao abrir o livro, cai um recorte de jornal: “Quem encontra um amigo encontra um tesouro”. Volta a sua mente a imagem do pai, de quem herdara o livro: alegre, risonho, bonachão, otimista, generoso, paciente. “Isso era bem dele”, pensa instantaneamente. E sua atual solidão, sua vida amarga, seu isolamento começam a pesar como se fossem uma traição ao que ele sonhara para a vida de sua filha.

14.
Zapeando pelos canais de TV ela deparou com a imagem dele. Tantos anos depois, a mesma fisionomia tranquila que esconde um vulcão submerso, a mesma voz pausada e reticente, as mesmas mãos suaves em gestos moderados, somente os cabelos encanecidos marcam a passagem do tempo. Sua voz, alterada pelos instrumentos eletrônicos, traía um torvelinho interior que somente ela poderia perceber e decifrar. Turbilhão que ela se negou a apaziguar quando eram ainda muito jovens.

15.
Quando as cicatrizes do sofrimento já estavam quase curadas ele telefonou. Tinham passado alguns meses de separação e ela já estava voltando à tona, enfrentando a rotina, experimentando uma pouco de paz. Mas ele telefonou e o redemoinho de emoções invadiu novamente toda a sua mente e o seu coração. Voltava à estaca zero. Quase sem prestar atenção nas suas explicações ela o aceitou novamente como sempre fizera.

16.
Em sua cadeira de balanço, as mãos jogadas sobre o colo, os cabelos brancos amarrados em um coque na nuca, os óculos abandonados na mesa ao lado, ela mentalmente calculou  os anos que tinham se passado desde que o conhecera. Eram mais de quarenta. Entretanto sua imagem permanecia tão nítida e tão vívida como se não tivesse passado nenhuma hora de seu último encontro.


Lucília Garcez