Blog do Instituto Casa de Autores, uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo é fomentar a leitura e qualidade dos escritores no Brasil.

sábado, 30 de novembro de 2013

Comprar ou não comprar, eis a questão!

                                                                                                                                                                                                                             
O Natal está chegando e, para muitas pessoas, é um tempo de estresse: confraternizações, festas e muitas compras! Este pode ser um bom momento para uma reflexão importante: preciso, quero, posso comprar?

Nesta época, a intensidade das propagandas e apelos de consumo cresce. Esses, às vezes, são claros, e outras vezes, subliminares. Para nos sensibilizar, o comércio usa músicas que nos remetem à infância. E utiliza mensagens do tipo: “Demonstre seu amor àquela que tanto cuidou de você – presenteie sua mãe com uma joia! Ela merece!” “Você só começa a pagar no ano que vem!” “Dez vezes sem juros”. “Fique tranquilo! Com o 13º salário você cobre as despesas extras!”

Infelizmente, Natal é tempo de armadilhas também. Especialmente pra quem passou o ano longe de casa, dos filhos, dos pais ou mesmo do cônjuge. A culpa é o “ingrediente perfeito” para um consumo exagerado.

Com a chegada das festas, aparece também uma oportunidade de compensar “tudo o que não foi dado” durante o ano. Afinal, o clima natalino inspira reconciliação, compreensão, amizade... As pessoas esquecem seus desafetos e se confraternizam.

Antes das compras, é interessante se perguntar: “Posso presentear as pessoas? Realmente quero fazê-lo? Qual é a minha verdadeira motivação ao presentear alguém?”. Experimente fugir das obrigações. Se decidir presentear, faça-o direito. Pense no que o futuro presenteado realmente gosta. Senão você corre o risco de dar algo que não tem nada a ver com a pessoa e que vai parar no fundo do armário!

Presentear significa que você quer “se dar de presente” a alguém, de tanto que você gosta dessa pessoa. É isso mesmo que você deseja quando vai presentear? Um presente de verdade é aquilo que é capaz de encher o outro de alegria por ter se sentido lembrado e querido por quem o presenteou. Dar por obrigação não vale a pena.

Algumas pessoas, lamentavelmente, pautam seu valor, bem como a importância que elas têm pro outro, pelos presentes que ganham ou, pior, pelo valor monetário deles. “Presentes caros significam que quem me presenteou gosta muito de mim”. “Presentes baratinhos significam o contrário.” Será que é isso mesmo? Cuidado com os clichês!

Se você pode presentear alguém, faça-o com consciência. Se não pode, experimente exteriorizar o seu carinho e a sua gratidão de outra maneira. Arrisque fazer diferente neste Natal: invista seu 13º e faça um bazar de trocas entre os amigos e a família. Aproveite e separe aquilo que você ganhou no último Natal e de que não gostou. Isso pode agradar alguém, porque os gostos são diferentes. Confeccione cartões expressando seus sentimentos e junte com algo que você mesmo pode fazer em casa. Use sua criatividade e inove. Consumir menos é uma responsabilidade de todos para a preservação do planeta. Pense nisso! E Feliz Natal!


Angélica Rodrigues Santos é psicóloga, professora e supervisora, coautora do livro “Família, afeto e finanças – como colocar cada vez mais dinheiro e amor em seu lar”, com Rogério Olegário do Carmo (Ed. Gente).

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Betes!



“Vou morrer”.
Mas este foi meu segundo pensamento.
A primeira coisa que me veio à mente foi “Ainda existo!”
E o espanto por ainda existir.


O primeiro teste foi bastante simples: projetamos a microcâmera cinco minutos para o futuro, ela permaneceu lá por alguns centésimos de segundo e retornou, trazendo uma foto da parede de fundo do laboratório.  Mais precisamente, ela trouxe do futuro a imagem, previamente definida, que projetamos a partir do quarto minuto. 

Décadas de estudo e quilômetros de equações, e finalmente o teorema basilar da Teoria Unificada das SuperCordas foi provado: era possível, efetivamente, navegar em curvas hipostasiadas pelas soluções de Gödel.  E mais: como Jules Boltzmann, o físico-chefe do CBPF[1], previra, a navegação se dava em sentido oposto ao previsto inicialmente, ou seja, navegava-se para o futuro, e não para o passado.

Desnecessário dizer que foi o evento científico mais divulgado pela mídia e mais acompanhado de manchetes sensacionalistas de que se tem notícia. Mas a equipe de Boltzmann estava focada demais nos próximos passos para prestar atenção nesses detalhes.

E o próximo passo foi justamente tentar validar os postulados de Dolfinger sobre a possibilidade de paradoxos, e a consequente possível construção de um outro universo, com um encadeamento diferente. Boltzmann acreditava firmemente que os paradoxos eram possíveis, mas tanto ele quanto o resto de sua equipe – da qual tive orgulho de participar – acreditávamos em uma abordagem ligeiramente diferente sobre os efeitos resultantes dos paradoxos temporais.

O teste correu em duas etapas. 

Na primeira etapa, a microcâmera foi enviada novamente para o futuro, e trouxe de volta uma sequência de dez fotos de imagens que foram aleatoriamente escolhidas e projetadas pelo computador do Centro. Quando, cinco minutos depois, a câmera apareceu dentro do campo de contenção e o computador sorteou e projetou as mesmas dez imagens a partir de um conjunto de cerca de sete bilhões de imagens possíveis, ficou provado que a estrutura temporal tende a evitar paradoxos.

Na segunda etapa, a microcâmera foi projetada pela terceira vez ao futuro e retornou novamente com dez imagens. Rapidamente, a equipe retirou a câmera da zona de projeção e a ligou ao computador, que removeu as dez imagens do banco de imagens. Quando a câmera apareceu, vinda do passado, o computador apresentou uma nova sequência de imagens, deixando a câmera retornar ao passado com imagens diferentes das que havíamos conseguido cinco minutos antes. No presente, nesse mesmo instante, as imagens armazenadas na câmera passaram a ser as novas imagens.

Nossa equipe festejou muito mais esse segundo teste, pois na verdade o primeiro teste apenas anunciara para o mundo o que já fazíamos há vários anos com táquions, depois com grupos de átomos, depois com nanoconstructos.

O segundo teste, para nós, comprovava que toda a linha de trabalho que vínhamos seguindo há anos era válida, e abria todo um novo horizonte possível de experimentos: se o contínuo de tempo-espaço era flexível e se ajustava às mudanças, poderíamos usar isso a nosso favor!

***

Por motivos diversos, desde o alto custo dos experimentos até o protesto de grupos fanáticos que apregoavam que nossas experiências levariam ao fim do mundo, a próxima projeção demorou quase um ano para ser autorizada. 

Boltzmann em pessoa fez questão de apertar o botão que projetava a microcâmera cerca de dez anos no futuro – o tempo máximo que conseguíamos até então – e a mantinha lá por quase vinte segundos, consumindo energia suficiente para iluminar uma pequena cidade por um mês.

Como planejado pelo físico, a câmera retornou com uma quantidade imensa de informação, enviada pela contraparte futura de nossa equipe: todas as informações, incluindo equações, diagramas e fotos diversas das descobertas do CBPF nos próximos dez anos. Conforme o combinado com a equipe, todo o conhecimento trazido do futuro foi creditado aos seus respectivos futuros descobridores, incluindo diversos trabalhos de físicos que (ainda) não faziam parte da equipe, e mesmo de um estudante que ainda cursava o ensino médio.

O esforço para estudo e aproveitamento do trabalho começou imediatamente; e conforme projeto de lei aprovado meses antes, o dinheiro oriundo das patentes reverteu-se para o Centro até a data de sua descoberta futura, quando passaria então para o descobridor – ou para quem seria o descobridor, caso as informações não tivessem vindo do futuro.

A imprensa, a essa altura, tinha se focado nos benefícios imediatos das “maravilhas vindas do futuro” e em discussões éticas ou religiosas tendo como pano de fundo a viagem temporal; desistindo de qualquer tentativa de entender ou explicar a seus leitores os paradoxos envolvidos nessas viagens ou os detalhes éticos e legais do empreendimento.

Paradoxo ou não, foi o dinheiro dessas patentes que permitiu que Boltzmann criasse em menos de dois anos os protótipos das células de carbono de alta energia, o gerador de fusão controlada e o novo projetor de campo de distorção temporal, com tamanho e autonomia bem maiores que o utilizado nos primeiros experimentos.

E foi aí que tudo deu errado.

***

Na primeira execução, Boltzmann sugeriu que projetássemos um campo vazio, esperando receber algo do futuro. O contrato e as leis se mantiveram as mesmas, com a diferença que agora não receberíamos apenas informações, estando aptos a receber até mesmo modelos de invenções a serem criadas.  Em uma brincadeira estilo “bolão”, cada cientista anotou o que achava que poderíamos receber do futuro, e quem acertasse ou chegasse mais perto levaria o dinheiro apostado por todos. 

As apostas variaram desde “uma versão melhor do projetor de campo”, aposta do próprio Boltzmann, até “vacinas para doenças que iriam aparecer nos próximos anos”, de Fannete-Marie Shelley, francesa que se unira ao grupo no correr dos últimos meses, atraída por uma patente creditada a ela por um trabalho que ela ainda estava pensando em iniciar.

Mas ninguém esperava o que recebemos quando projetamos o campo por trinta segundos, a exatos vinte anos no futuro: quando o efeito fotoelétrico diminuiu e pudemos tirar os óculos de proteção, no centro da sala uma estranha criatura nos encarava, balançando lentamente o corpo e virando a cabeça de lado, enquanto piscava curiosamente os olhos multifacetados.

***

A seção do laboratório onde o campo era projetado era hermeticamente selada, e só foi aberta dois dias depois, quando um novo local para o bizarro ser foi preparado. Homens armados com bastões elétricos e armas, devidamente protegidos por trajes de proteção biológica, encaminharam o ser para um transporte e daí para a seção hospitalar que havia sido incrementada com uma área de isolamento total. A coisa seguiu passivamente, sem oferecer resistência.

A comoção gerada pelo aparecimento da criatura foi grande, e pressão da imprensa e da opinião popular forçou o Centro a paralisar todas as pesquisas até que desse uma explicação definitiva para o aparecimento do suposto animal.

A equipe isolou-se no Centro, então, concentrando seus esforços para decifrar aquela moderna esfinge.

***

A criatura, cujo pelo longo e rosa cobria todo o corpo, foi logo batizada de “Bete”, em homenagem à secretária do Centro, cuja obsessão por roupas e objetos rosa era notória. Os movimentos de seu corpo, em eterno balançar e com os longos braços sempre dobrados, com as mãos quase unidas, lembravam em muito os de um louva-a-deus. Era um bípede, quase se assemelhando a um primata na aparência geral, mas com olhos e um formato de rosto que evocavam um quê do reino dos insetos. Nas raras vezes em que emitia algum som, ele soava como uma série de estalidos gerados pela boca, sem participação da garganta.

Afora as óbvias diferenças externas, seu corpo era estranhamente humano, com pulmões, rins e alguns outros órgãos idênticos aos humanos. O coração era maior e batia cerca de duzentas vezes por minuto, e o cérebro avantajado e complexo sugeria capacidade cognitiva superior à dos primatas.  Estranhamente, o animal parecia assexuado, e alguns órgãos desconhecidos permaneciam inativos em seu corpo, o que levou a uma série de teorias, todas inconclusivas.

O diagnóstico ao fim de seis meses foi que o ser não carregava nenhuma doença e não representava perigo aos humanos. Além disso, era pacífico e obedecia ordens, o que levou a equipe do Centro a sugerir que provavelmente era algum tipo de ser geneticamente modificado para realizar atividades básicas para a sociedade do futuro.

Os cientistas estavam preparando uma apresentação do Bete aberta ao público em geral, para demonstrar que o ser era inofensivo, quando ele escapou, fugindo para o Morro do Pasmado, perto do Centro. Na fuga, ele matou sete pessoas, se movimentando em uma velocidade que as câmeras de segurança mal registraram.

Três meses de buscas infrutíferas depois, um grupo de uma dezena de Betes atacou uma igreja evangélica na favela da Rocinha, matando diversos fiéis e raptando outros tantos.

Um ano após o primeiro ataque, o Rio de Janeiro precisou ser evacuado.

Isso foi há quase dezenove anos. Desde então, a situação piorou em muito.

***

Nós, os remanescentes da equipe original de Boltzmann, com o apoio do que havia restado do governo, gastamos os últimos anos, e muitas vidas, criando e aperfeiçoando um homeotraje – uma roupa semelhante a um traje de mergulho, composta por nanoconstructos que mantêm sua superfície externa exatamente à temperatura ambiente. Como os Betes enxergam apenas na zona dos raios infravermelhos, basicamente ficamos invisíveis para eles. O traje se completa com borracha de alto impacto e isolamento acústico, na tentativa de nos deixar, também, inaudíveis para os monstros.

Com a queda final das linhas de comunicação e dos últimos resquícios de governo, restamos nós três, no laboratório escondido no pico das Agulhas Negras. Com o aproximar da data fatal, fizemos um sorteio, e restaram a mim o homeotraje e a missão suicida.

***

Meus colegas deixaram-me o mais próximo possível do Rio, trafegando por locais que sabíamos ser de pouco interesse para os Betes. Com um pouco de sorte, sobraram apenas algumas dezenas de quilômetros para eu percorrer a pé. A despedida foi calorosa, mas sem lágrimas. Não nos sobraram lágrimas, depois dos últimos anos.

Quanto mais eu me aproximava de Botafogo, mais lentamente eu precisava ir para não ser descoberto. Cheguei a passar um dia inteiro imóvel, escondido em um nicho, com medo até de respirar mais ruidosamente.  Felizmente, a maioria das criaturas dormia de noite, o que me dava uma boa liberdade de movimento com o homeotraje.

Mas mais do que medo, o que senti foi surpresa: os Betes eram muito mais organizados e inteligentes do que pensávamos. Abandonei imediatamente a ideia de que eles eram marginalmente inteligentes quando, escondido, vi pela primeira vez dois deles conversando, as línguas estalando em diversos tons enquanto os braços dançavam em gestos quase humanos.  Quando os vi utilizando instrumentos complexos, tanto alguns que deixamos para trás como outros que não reconheci, percebi que a humanidade estava fadada à extinção.

A menos que minha missão tivesse sucesso.

***

No dia e hora exatos, eu estava lá.

O laboratório do CBPF havia se tornado, aparentemente, o centro de algum tipo de culto dos Betes. As criaturas rosadas, algumas delas se destacando por faixas de pano finamente bordadas em torno da cabeça, circulavam lentamente entre as salas do antigo centro. Eu passara a última semana para conseguir chegar ao laboratório de projeção, e os últimos dois dias sem comer, esperando em um canto escondido.

Duas horas antes do momento certo, dez ou doze das criaturas entraram na sala. Como se soubessem o que iria acontecer – diabos, com certeza sabiam! –, sentaram em um círculo em torno da zona onde, em breve, seria gerado o campo de projeção que conectaria o presente com vinte anos atrás.

Quando faltavam quinze minutos, os Betes começaram a entoar um cântico exótico, enquanto um deles, que tinha uma faixa bordada à cabeça e outra à cintura, se levantou. Lentamente, a criatura removeu as faixas e se aproximou do centro do círculo, ficando à espera.

O cântico soou mais alto, e as criaturas pareceram entrar em uma espécie de transe. A seguir, a sala foi iluminada por um jorro de luz, quando o campo gerado pela minha antiga equipe se formou no centro da sala. O visor do capacete compensou o excesso de luz, permitindo que eu visse o que estava ocorrendo.

O Bete no centro do círculo cumprimentou os demais com um gesto ritualístico, dando um passo e entrando inteiramente na zona de projeção, que iria se desligar em mais vinte e cinco segundos.

Rapidamente, mas evitando barulhos, corri para o campo de projeção e estendi o braço até sua zona limítrofe. A interferência dos metais pesados do traje, como já sabíamos, fez com que o campo entrasse em colapso no momento em que a projeção iria se encerrar.

***

O brilho do campo flutuou e se apagou abruptamente, com um estrondo que indicava que um vácuo se formara na zona de projeção.

Imediatamente, Boltzmann sabia que algo dera errado. O vácuo só ocorreria se a porção do presente projetada para o futuro houvesse, por algum motivo, deixado de existir no presente.

Com efeito, ao retirar os óculos, os cientistas do CBDF constataram que o experimento falhara.

Ninguém ganhou o “bolão”, a imprensa e os grupos radicais alardearam o fracasso, sugerindo motivos diversos.

A equipe do Centro, no entanto, tinha verbas para continuar suas experiências.

Verbas, e tempo.

***

Os postulados de Dolfinger contribuíram decisivamente, anos depois de sua morte, para o estabelecimento da Teoria Unificada das SuperCordas.

Segundo Dolfinger, paradoxos temporais eram possíveis, e suas equações indicavam que os paradoxos geravam universos diferentes, com novos encadeamentos temporais. Infinitos universos, para infinitos paradoxos possíveis.

Jules Boltzmann, por outro lado, criou toda uma nova série de equações que se baseavam na ideia de que não havia nenhum outro universo além do nosso. Seu trabalho se encadeava com as equações de Dolfinger ao estabelecer que valores infinitos e o zero se equivaliam.

Apesar de não havermos conseguido nenhuma prova experimental sobre este ponto específico, todo o trabalho do CBPF se baseava na crença de que as ideias de Boltzmann eram válidas.

Por isso, ao ver que o campo de projeção se desfizera, lançando pequenos pedaços do Bete e de meu braço por todo o laboratório, meu primeiro pensamento foi de surpresa:

“Ainda existo!”
Então, a dor me atingiu e vi os Betes do círculo começarem a se levantar.
E foi quando pensei:
“Vou morrer”.


Alexandre Lobão



[1] Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, situado em Botafogo, no Rio de Janeiro

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Chuchus para Suaçuí


O relógio ainda não dera nove horas, mas o balaio de verduras já estava vazio. Voltei animada para casa, com a certeza do dever cumprido. Oba, já tinha dinheiro para o ingresso da matinê do domingo. A alegria de ver o Tarzan todo lindo pulando de cipó em cipó, acompanhado por Jane e pela macaca Chita, estava garantida. Com um pouco de sorte, talvez o dinheiro desse até para um saquinho de pipocas e um picolé de amendoim, quem sabe?

A animação, contudo, não era completa, pois a venda dos chuchus, os últimos legumes do balaio, sempre os de saída mais difícil, deixara dentro de mim um cantinho sombreado. Como conhecia a clientela, saía de casa bem cedo para oferecer as cabeças de alface, os molhos de couve, salsa, cebolinha, mostarda, acelga e almeirão primeiro, pois murchavam à toa, em sua verde fragilidade. A dona do hotel perto da ponte de cimento via as verduras em primeira mão, e geralmente ficava com as de folhas. Depois era a vez dos tomates graúdos, também bastante disputados. Mas os chuchus, ah, os chuchus, mesmo novinhos e claros ficavam no fundo do balaio, duros de carregar e de vender.

Até sua coleta era difícil, já que a rama que tínhamos na cerca espalhou-se pelo telhado da casa. Mal o dia clareava, mamãe pegava a escada para eu subir e andar de gatinhas sobre as telhas, procurando os frutos que se ocultavam debaixo das folhas, em geral mais bonitos e palatáveis. Fazíamos tudo em silêncio, para que papai não soubesse de nossa estripulia, responsável pela quebra de várias telhas, que volta e meia ele tinha de mandar arrumar.

Minhas andanças pela cidadezinha incluíam a zona boêmia, na época conhecida como “Coreia”, um amontoado de casinhas no final de uma rua central e comprida. Conhecia todas as “meninas”, que me recebiam bem, oferecendo-me broa de milho ou farinha de fubá torrado acompanhada de café, inhame com melado, batata-doce com açúcar e canela e outras iguarias. Mamãe sabia, mas não se opunha – provavelmente confiante na ética das “meninas” em relação a uma criança de nove anos.

Meio ressabiada, eu entrava nas casinhas, só aceitava ir até as cozinhas minúsculas, evitando cuidadosamente os quartos. Que, aliás, eram completamente assépticos e inofensivos à luz do dia, minúsculos eles também, separados do resto da casa por cortinas feitas de tiras de plástico ou de contas de lágrimas, que balançavam quando o vento batia. Só uma vez consegui olhar um quarto por dentro, mas tudo foi tão rápido que vi apenas a lâmpada coberta por algo que me pareceu um lenço vermelho.

As cozinhas tinham fogão de lenha e prateleiras cobertas de folhas de papel de seda recortadas de florezinhas, nas cores azul ou verde. Lembro-me do brilho das panelas e dos limpíssimos tachos de fazer doce. Sobre as chapas dos fogões reinavam os bules esmaltados, cheios de café adoçado com rapadura, ralo demais e com gosto de palha.

Gostava especialmente de uma das moradoras, a Madá, que tinha corpo de violão e lembrava um pouco a atriz Sarita Montiel. Ao contrário da espanhola, tinha voz de taquara rachada, em completo desacordo com suas curvas e sua robustez. Usava um perfume muito forte e saias tão justas que não conseguia sentar-se direito. Era a mais gentil de todas, sempre querendo me agradar.

Naquela manhã, provavelmente de maio ou junho, fazia um frio terrível e eu estava sem paletó. Consegui vender tudo bem cedo, com exceção, é claro, dos chuchus. Meus braços doíam de tanto carregar o balaio, os chuchus branquelos e fresquinhos, ainda com gotas de orvalho, pesavam como pedras. Eu os olhava e tinha vontade de atirá-los rio abaixo. Já estava morta de antipatia do jeito deles, sem cor, sem nenhuma “personalidade leguminosa”, sempre adquirindo o gosto do tempero que a gente põe na panela, coisa mais entojada de vender é impossível. Bati em várias portas, todos que me atendiam diziam que tinham rama em casa; como vender tijolos para oleiros?

Sacudindo o balaio com raiva, mudando-o de braço a cada instante, fui andando depressa até chegar às casas das “meninas”. De novo, a mesma resposta negativa. A casinha de Madá, a penúltima da rua, quase chegando ao pasto, estava com a porta aberta e cheirava a café fresco. Recebeu-me com a mesma alegria de sempre, e disse que viajaria no dia seguinte para Suaçuí, para visitar uma prima. Comprou todos os chuchus, pois a prima, disse, iria adorar o presente, comentando que Suaçuí não era longe e que poderia acomodar os legumes numa bolsa de ráfia.

Voltei pensativa, bem alegrinha com o rolinho de dinheiro na mão, mas achando a ideia da Madá muito estranha. Onde ficaria Santa Maria do Suaçuí? Será que lá não havia chuchus? E essa prima, será que apreciaria mesmo presente tão bizarro?

Uma de minhas irmãs quis dramatizar a história, dizendo que tinha muita pena de Madá, do modo como ela ganhou o dinheiro com que pagou os chuchus. Eu não me importei muito com isso, ou quis não me importar, repetindo, mentalmente, que deveria me preocupar era com os meus braços, que doíam de tanto carregar balaio.

Nunca me esqueci de Suaçuí, cidade que permanece desconhecida para mim. Sei que suas origens remontam à época das entradas e bandeiras. Fernão Dias Paes Leme, o mais ilustre dos bandeirantes, se aventurou pela região em busca de um vale de onde se avistavam, segundo a lenda, rios e areias de ouro, além de árvores com frutas do mesmo metal. Consta que ele ficou encantado com a lindeza da Lagoa de Vapabuçu e da Serra Resplandecente, atualmente chamada Serra do Cruzeiro. Fundado oficialmente em 1920, o município possui aproximadamente quinze mil habitantes. Sua economia é movimentada pelo comércio, pecuária, produção de laticínios e agricultura.

Não sei se a prima da Madá gostou dos chuchus ou se achou o presente a coisa mais sem graça do mundo, como eu teria achado. Contudo, posso afirmar que Suaçuí ficou entranhada em mim, assim como a Madá, as outras “meninas”, o gosto do café ralo, a leveza inesquecível das mãos da mãe ao amarrar os molhos de folhas e o pequeno balaio onde cabiam algumas verduras e todos os sonhos.

Rosângela Vieira Rocha


quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Beleza colorida



A primavera ainda não havia chegado e Brasília já se enfeitava para receber a nova estação. Dá gosto ver por toda a cidade os ipês que se vestem de flores para esperá-la. Aqui e ali eles se mostram como a esperar nossa reação diante de tamanha beleza. Florescem numa paisagem antes castigada pela seca e contrastam com o cinza da grama, dos jardins, dos parques e dos passeios públicos. Na época da secura, a cidade se desnuda e, às vezes, desencanta. Mas falar de desencanto é fácil porquanto agride e fere; já enxergar a beleza perdida entre tantas coisas que compõem a diversidade da paisagem brasiliense requer uma leitura além do concreto, além do horizonte, além do que somente a sensibilidade pode captar. É que nos evoca essa dama – Primavera – trazendo uma florada mágica que oferece à cidade alguns tons de fazer inveja a qualquer artista do pincel e das tintas. É...  sem dúvida, os ipês de Brasília são uma festa para os olhos!

Elba Gomes

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Instantâneos - Momentos de dor (III)


7.
A mesa posta para dois. A melhor porcelana, copos de cristal, toalha de linho branco, flores no centro de prata. O vinho ainda fechado no balde de gelo já derretido. As velas apagadas nos castiçais. O relógio de parede bateu as badaladas indicando meia-noite. Sentada no sofá, ela despertou assustada. Tinha cochilado durante a longa espera. Conferiu a hora. Acendeu as luzes. Começou, então, lentamente, a desarrumar a mesa e a juntar os cacos da sua alma destroçada.

8.
Quando ela entrou no quarto o computador estava ligado. Sentou-se diante da tela e viu que uma mensagem tinha começado a ser escrita. Com certeza ele resolvera ir tomar água na cozinha e deixara por instantes a máquina ligada. Passando os olhos, de repente ela se deu conta de que era uma mensagem de amor... e não era para ela. Havia alguém mais na vida dele. Sua vida dissolveu-se em segundos, como pequenas bolhas de sabão no ar.

9.
No meio da festa, enquanto os convidados caíam na gargalhada depois que, já meio embriagado,  contara uma piada, ela olhou para ele e o viu como realmente era. Uma mistura de desprezo e indiferença invadiu todo o seu corpo, sua mente, sua corrente sanguínea, e ela percebeu que era o fim do amor, que dali em diante não poderia mais viver junto a ele. Já nem sabia mais o que um dia os aproximara. Saiu da sala com o sentimento de que ali não era a sua casa.

10.
A dona da casa e o empregado estavam sentados na varanda olhando o mar. O velho contava a ela o longo e profundo sofrimento de sua mulher com uma doença fatal. Falava de suas noites maldormidas, de suas tentativas de amenizar a dor da companheira, de seu desespero por saber-se inútil e impotente diante da fatalidade, de sua vontade de colocar fim naquela agonia prolongada. Ela entrou na sala em silêncio, abriu uma gaveta e entregou um pequeno vidro azul ao ancião. Ele colocou o veneno mortal no bolso da camisa. Os dois continuaram olhando o mar cinzento sob as nuvens que prenunciavam chuva.

11.
Ela chegava de viagem num voo anterior ao que estava programado inicialmente. Pegou sua bagagem e se dirigiu ao ponto de táxi que ficava além do saguão do aeroporto. Seu coração alvoroçado pela surpresa que pretendia provocar. No trajeto, cruzou com um casal que se abraçava apaixonadamente  numa longa despedida. Imediatamente reconheceu o perfil dele. Perplexa, abaixou os olhos e seguiu adiante, como se aquele não fosse o homem com quem dormiria todas as noites subsequentes de sua vida.

Lucília Garcez

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Sucesso financeiro: suas emoções dão o tom


   
O sucesso é resultado de uma série de fatores: conhecimento, criatividade, ação, experiência, flexibilidade, entre outros. Para ter sucesso, não basta apenas trabalhar; é preciso ter uma visão profunda do seu negócio, enxergar e ir além, pois o sucesso necessita de aprimoramento constante.

O sucesso profissional e financeiro se inicia muito cedo na vida. Começa na infância, com a relação que cada um estabelece com seus pais.

Você foi estimulado a vencer, a enfrentar ou a desistir?

Os pais, com sua forma de ser e de educar, ensinam princípios muito importantes para a vida, inclusive para o manejo das finanças.

Cada indivíduo recebe uma herança biológica e também emocional dos pais. Esse legado familiar se refere a tudo: valores e posturas frente a dinheiro, sexo, amor, higiene, relacionamentos e é ensinado como forma de preservar a vida em comunidade. Pais que não sabiam lidar com dinheiro geralmente ensinam seus filhos a ter dificuldades financeiras; pais prósperos dão um modelo de enriquecimento.

Muitas vezes, a pessoa que recebeu pouco estímulo dos pais consegue buscar o que lhe faltou junto a outros, em instituições ou mesmo na própria vida. Mas ainda assim o peso do modelo é muito grande, pois essa bagagem fica registrada dentro do indivíduo.

Há uma lealdade amorosa dentro da família. Assim, o nível de bem-estar e abundância que cada um constrói na vida está relacionado à zona de conforto dos pais. Dessa forma, a pessoa se sente confortável nessa mesma área. Por exemplo, se seus pais são de classe média, continuar na classe média é algo conhecido e seguro. Ir além, ou seja, tornar-se rico, pode, então, dar medo e gerar ansiedade. Assim, sem perceber, você pode sabotar suas possibilidades de enriquecimento para evitar lidar com essas questões familiares porque, no fundo, todos querem ter uma relação harmônica com o clã.

Uma forma de ter riqueza e saúde é honrar os pais e antepassados, sabendo que eles fizeram o melhor que puderam. E aceitar o passado, seja ele qual for. Honrar esse passado é uma maneira de parar de brigar com o que não pode ser mudado e deixar de gastar energia com isso. A energia, assim, pode ser canalizada para outras coisas e para o sucesso da empreitada que a pessoa deseja realizar. Enriquecer e prosperar significa, no fundo, que os pais foram ótimos pais, porque a partir deles o sujeito pode crescer.

Para ter sucesso financeiro é necessário estar com suas emoções integradas e equilibradas. É importante ainda descobrir os bloqueios internos que possam estar impedindo-o de enriquecer.

Pare e pergunte-se: você sente medo ou ansiedade ao pensar em grandes quantias de dinheiro? Como ficaria seu trabalho, sua relação com a família, amigos, se ficasse milionário? Que reação eles teriam: alegria, contentamento, inveja, raiva, surpresa, medo? Como você lidaria com essas emoções alheias: sentiria prazer, triunfo, culpa, medo?

Se você acha que sua família não lidaria bem com o seu enriquecimento, trabalhe essa questão, pois isso pode estar bloqueando-o para dar saltos na vida.

Construa, primeiramente, uma permissão interna para enriquecer, pois quem se sente capaz e merecedor de riqueza chega lá. Às vezes é só uma questão de tempo. Espero que de pouco tempo!


Angélica Rodrigues Santos (psicóloga, professora e autora do livro “Família, afeto e finanças – como colocar cada vez mais dinheiro e amor em seu lar”, em parceria com Rogério Olegário do Carmo)