Blog do Instituto Casa de Autores, uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo é fomentar a leitura e qualidade dos escritores no Brasil.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Memórias da água


A vida da água merece memória? Memória em forma de livro na estante? Pingo D’Água Serenoso Orvalhado do Antúrio acredita que sim. Sobretudo em tempos que ameaçam a integridade hidrológica da Terra. Serenoso nasceu num recanto sombreado de mata densa, para o doce prazer da reflexão. Tão sensível à poesia era ele, que ao refletir sobre o amor que dedicou a Begônia, ou sobre a luta que travou na Campanha de Salvação das Águas Rasas, ou sobre os transtornos que lhe valeram ser internado, discriminado, despejado e, num infausto momento da existência, filiado à gangue dos Transbordados do Tietê, inspirou-se nos versos de Camões: “Sôbolos rios que vão por Babilônia me achei...” Confiram no livro Sobre os rios que vão – memórias de um pingo d’água, de minha autoria – editora Dimensão.

Margarida Patriota

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Forasteira

Foto: Paulo de Araújo 


Eras para mim como cidade e eras mais que isso: encanto, susto, medo, novo. Diferente sem dúvida. Assustador. Assustadora cidade. Grande – não tanto quanto a minha – mas cheia de distâncias pra mim inatingíveis. Ter que te engolir dá mais trabalho do que gostaria. Engasgo, vomito, cuspo, mas tenho que te engolir, cidade, como se fosses mais que cidade, corpo amado – este sim apetitoso a ser engolido sem engulhos.
Aqui no teu corpo, cidade, encontrei o corpo amado, que me anda a ensinar a fazer digestão de ti, ou deglutição, ao menos. Vamos por partes, má. Aqui me apresentaste um sabor de liberdade que dói de chorar. Dona do corpo que sorve e engole e cospe não engole, e engasga até água, por quê? O que fizeste de mim, saudade?
Cidade, teu nome é saudade: do amor que se foi sem ter sido, daqueles tantos amores que me cercavam numa doce e suave redoma eterna da infância adolescência sem perigos, ou com todos eles sob controle. Cidade saudade que me trazes de novo o que nunca houve. O novo. O homem. O que me dá o que nunca me deram antes, inteiro, sem resquício de dor, sujeira ou maldade. O bom. O bom de mim, o bom de amar. Sem ideal. O abraço que me descansa, o braço que transporta e conforta. O cansaço e o descanso, o esforço para sair de mim e chegar no outro. Chegar no outro com tudo. Inteira.

Cidade saudade que me cria novas saudades, e agora, quando chego lá, onde queria estar, pedaço de coração fica pra trás, esperando retorno. Tenho que voltar. Antes tinha que voltar pra lá, agora tenho também que voltar pra cá. E agora, cidade? Amar-te como àquele que me deste de bandeja, numa noite quente, vazia, um corpo quente e vazio de mulher que sequer procurava qualquer coisa. Agradecer-te e deixar-te? Tens culpa? Tenho eu?

Peras, uvas, maçãs, salada mista. Futuro chegado com liames de passado atravessados na cama, espraiado corpo de homem com cheiro de conhecido e íntimo, como se estivesse a vida toda ali, ao meu lado, e não há cinco minutos. Cinco que são cinquenta. Cinquenta que são quinhentos. Amor, será? Como se chama esta fruta que serviste madura, doce, gostosa, pronta para ser sorvida, pronta para ser amada? Como se chama este homem, como se chama este sentimento que me penetrou de manso e invadiu espaços antes ocupados pelo imenso vazio e agora montou barracão e não parece sair?
Como te chamar, cidade? Saudade? Eu, forasteira, já posso te chamar de minha, sendo tão pertencente à outra, à que amo e que deixei sei lá por quê? (Sei bem, não minto. Deixei alguém, um tempo, uma infância a ser página virada. Deixei? Deixei, mesmo?)

Eu sei. Vou voltar, sei que ainda vou voltar. Mas para onde, agora? Qual o meu lugar? Quais braços me envolverão, aqui ou acolá? Qual música embalará meu sono pesado ou leve, atenta à sua apneia, atenta ao desvio do seu septo? Trilha sonora do passado ou do futuro? Qual meu presente, se nem presente de aniversário ganhei, senão o amor dos meus 45 anos, aqueles que encerram o período fértil que a natureza estipulou pra mim... Meu período fértil, vou te explicar, cidade que não me conheces: acaba de começar. Fertilidade muita, brotando, florando, verdejando, deitando raízes aéreas e profundas, das duas. Fim de ciclo, não, início de ciclo. Uma canção para ele, uma canção para mim, uma canção para o mundo, uma canção pra tocar no rádio. Sim, período fértil.
Me aguarda, cidade onde habita minha saudade, onde conjugo novos verbos, mas não deixo de saudar o longe, o perto, dores felizes, dores agudas, dores graves. Me aguarda e verás do que sou capaz. Sou capaz de te dar um baile, te dar um nó e ir embora, levar comigo o homem que me conquistou – ou não, levá-lo no meu coração como um dia já aconteceu, para viver de novo de lembranças, agora apenas com a diferença de que conheci a felicidade. Não nos teus braços frios, cidade, mas nos quentes braços pretos do meu branco, mãos de amor e carinho e segurança e força e alegria e esperteza e calma e serenidade e inteligência e doçura e ternura e preguiça e trabalho e cansaço e descanso e prazer e relaxamento e gozo e pertencimento e beleza e fogo e paixão e habilidade e talento e foco e mira e entrega e abandono e tao.

Clara Arreguy 

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

A arte da leitura



Leitura e prazer são indissociáveis. São elos de uma cadeia ligados pelo amálgama que cimenta um dos objetivos do ser humano: ser feliz. Assim é a leitura. Ela passa pelo prazer de descobrir algo novo, de sair da realidade e entrar em outra dimensão onde tudo se processa de forma prazerosa.

Reportemo-nos, então, ao escritor francês Daniel Pennac[1], cujo livro “Como um romance” foi publicado no Brasil em 1993, portanto, há 20 anos, e que ainda contém o frescor de notícias novas.

Para os que se esqueceram do prazer proporcionado pela leitura, o autor diz:

Eles tinham simplesmente esquecido o que era um livro, aquilo que ele tinha a oferecer. Tinham se esquecido, por exemplo, que um romance conta antes de tudo uma história. Não se sabia que um romance deve ser lido como um romance: saciando primeiro nossa ânsia por narrativas”.
           
Fala-se muito das inúmeras dificuldades de se incrementar a leitura: a ausência de bibliotecas nas escolas e o preço do livro estão entre as mais citadas. A despeito de todas as variáveis que influenciam o processo de formação de leitores, sabe-se que a literatura infantil tem conseguido espaço considerável junto a escolas e crianças, do maternal aos primeiros anos da escolaridade básica.

Vamos nos debruçar, então, sobre um aspecto positivo da questão, ou seja, sobre o fato de que cada vez mais as escolas estão empenhadas em desenvolver atividades focadas nos eventos de leitura. Em consequência, mais histórias são lidas e contadas e mais crianças são seduzidas pela magia da leitura.

Quando se fala em leitura, ela parece se subdividir em duas atividades: ler e contar. Um dos traços distintivos delas é que, ao se ler a história, ela é apresentada preservando as palavras escolhidas pelo autor. O leitor deve se manter fiel ao que está escrito.

Por outro lado, na contação da história a trama pode sofrer pequenas modificações, já que o contador tem a liberdade para improvisar e agregar elementos a ela. Ele nunca conta a história da mesma forma.

Parece-nos que o foco não deve ser a característica dicotômica das duas atividades, mas sim o “acontecer”. Ler ou contar, tanto faz, desde que mais e mais crianças tomem intimidade com as leituras, com as ilustrações, com os autores, com os ilustradores, enfim, com o mundo mágico dos livros.

O mais importante é que ler ou contar proporcione um prazer tão duradouro que as crianças, ao se tornarem adultas, nunca se esqueçam do que é um livro.

Rubem Alves[2] tem sua receita:
[...]

Se eu fosse ensinar a uma criança a arte da leitura, não começaria
com as letras e as sílabas.

Simplesmente leria as histórias mais fascinantes que a fariam entrar
no mundo encantado da fantasia.

Aí, então, com inveja dos meus poderes mágicos, ela quereria que eu
lhe ensinasse o segredo que transforma letras e sílabas em histórias.
É assim. É muito simples.”

ElbaGGomes



[1] PENNAC, Daniel. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
[2] ALVES, Rubem é um psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro. É autor de livros e artigos abordando temas religiosos, educacionais e existenciais, além de uma série de livros infantis.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Instantâneos Momentos Dor


1.
Ela estava deitada do seu lado costumeiro da cama. Seu sono era leve, sobressaltado, às vezes, como por espasmos intermitentes. Acordou, passou a mão esquerda pelo travesseiro vazio ao seu lado. Foi então que sentiu uma agulhada no peito, como se seu coração estivesse sendo golpeado por um punhal muito fino. Duas lágrimas rolaram pelo seu rosto devastado pela irremediável ausência.

2.
A mãe recebeu o corpo do filho das mãos dos policiais dentro de um caixão simples. Acariciou a face estragada por hematomas e cortes. Abriu a camisa e conferiu todas as feridas no tronco. Virou o corpo e vistoriou todas as marcas e chagas nas costas. Abaixou as calças e examinou os vestígios das queimaduras, os abscessos, as ulcerações. Pegou as mãos e afagou delicadamente os desvãos de onde as unhas foram arrancadas. Depois pegou os dedos dos pés e conferiu um a um. Só então, depois de reviver todas as dores, os suplícios, as aflições de seu filho, com um pequeno soluço abafado, pediu que fechassem o caixão.

3.
O pai e a filha conversaram sobre um conserto que precisava ser feito no telhado. Riram da segurança com que o pedreiro assegurava a exatidão do seu diagnóstico. Comentaram a iminência de um gol no jogo de futebol que estava sendo transmitido pela TV. Depois ficaram em silêncio acompanhando os passes dos jogadores. Quando, enfim, a filha olhou para o pai na cadeira de balanço  ao seu lado, ele fechara os olhos e deixara pender a cabeça para a direita suavemente, sem nem mesmo um último suspiro ou uma palavra de adeus.

Lucília Garcez

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Seu amigo, o gerente do banco



Quando pergunto às pessoas a quem elas recorrem quando querem se informar ou tomar uma decisão sobre investimentos, a maioria responde “ao meu gerente de banco, afinal, ele é a ‘pessoa’ do mercado financeiro”. Segundo Aurélio Buarque de Holanda no "Novo Dicionário da Língua Portuguesa", “gerente. [Do lat. gerente.] Adj. 2 g. e s. 2 g. que ou quem gere ou administra negócios, bens ou serviços”.

Há tempos, nos bancos só havia um gerente – o da agência. Era ele que a administrava e geria os negócios. Mais recentemente, os bancos descobriram que a maioria das pessoas não administra as próprias contas. Isso se dá por falta de tempo, por procrastinação, por desconhecimento e outros motivos. Desse modo, foram colocados “gerentes” para cuidar delas. Hoje, diversos funcionários em um banco têm o título de gerente. É o gerente de contas. Você se refere a ele como “o meu gerente”.

Seu gerente? Por acaso ele é seu funcionário, pago por você para administrar e gerir seus negócios? Creio que não. Pior ainda, você acha que ele, além de seu gerente, é seu amigo? Lembre-se: para ele você é, simplesmente, cliente. Portanto, para você, ele é um funcionário do banco, pago pelo banco, com pesadas metas para vender serviços e produtos financeiros.

Cuidado. Nessa hora a “amizade” serve para convencer você a aceitar um produto ou serviço do qual você não precisa, que não pode contratar ou que até mesmo desconhece – a título de ajudá-lo (o gerente) a cumprir metas. Pela “amizade” ele concede a você um empréstimo. Desde que você contrate também um seguro, um título de capitalização ou uma previdência privada – às vezes os três. Tudo para, de novo, ajudá-lo. Além de ferir o Código de Defesa do Consumidor, ele acaba emprestando a você parte do seu próprio dinheiro. Amigão, ele.

Quem investe ou toma decisões financeiras baseadas nas orientações do “gerente-amigo” corre o risco de ter os interesses sobrepostos pelos da instituição. É simples. O bom funcionário atende, acima de tudo, aos ditames do empregador, e os produtos indicados para você tendem a ser aqueles mais rentáveis. Para o banco.

Tire a prova. Você já foi aconselhado a reduzir gastos ou a não usar o cartão de crédito para evitar um endividamento? Já foi chamado para conversar sobre melhores opções de investimentos para você? Taxas e tarifas, algumas foram baixadas por livre e espontânea vontade do seu gerente? Ele já aconselhou você a NÃO contratar títulos de capitalização, consórcios ou produtos de previdência privada? Já sei, as respostas foram “não”!

Além disso, você já viu o seu amigo gerente recomendando-lhe mudar de banco? Claro que não, seu banco pode estar na iminência de quebrar e nada vai ser dito a você. E mesmo que seu banco seja muito bom, sempre haverá bancos melhores que o seu; porém, dificilmente seu gerente vai dizer isso.

Portanto, assuma as rédeas da sua vida financeira. Dedique tempo a ela, informe-se sobre o melhor de cada banco, tarifas, taxas, serviços, atendimento, fundos, informações ao cliente. Pesquise qual banco atende você com mais rapidez, mais qualidade e, se achar banco melhor que o seu, mude. Mude e gerencie a sua conta. Afinal, o gerente dela é você. Ninguém mais.


Rogério Olegário do Carmo é consultor financeiro pessoal e coautor do livro "Família, Afeto e Finanças – Como levar cada vez mais dinheiro e amor em seu lar", em parceria com a sua esposa, a psicóloga Angélica Rodrigues Santos.