Blog do Instituto Casa de Autores, uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo é fomentar a leitura e qualidade dos escritores no Brasil.

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Sete dias


Às vezes imagino o que os livros de história do futuro vão falar sobre esses dias...
No entanto, sempre tenho certeza sobre o que eles não vão falar.
Mas não estou escrevendo para deixar algum registro da época para gerações futuras – até porque não sei se haverá gerações futuras. Nem escrevo por amor à arte de escrever ou qualquer outro motivo nobre, como fazer uma homenagem àqueles que sei que vão morrer ou coisa semelhante.
Não, nada disso. Escrevo para organizar meus pensamentos. Escrevo para coordenar minhas ideias e tentar, com isso, lembrar-me melhor das coisas que virão.
E se com isso algo coerente acabar vazando para o papel e a História, melhor.
Mas escrevo, somente, para sobreviver.


DIA 1


Acordei – acordei? – sentindo-me estranho naquela manhã de terça-feira.

A cabeça enevoada trazia um tom de irrealidade para tudo, como se eu estivesse apenas parcialmente consciente. O banho gelado não ajudou a dissipar o incômodo.

Enquanto tomava café e me preparava para ir à universidade, revisei mentalmente o que havia feito no dia anterior e o que comera no jantar. As lembranças demoravam a chegar, como se fossem resgatadas de um local distante e profundo, mas mesmo assim tive certeza de que não fizera nada que pudesse justificar aquela sensação.

Na UnB, à medida que as aulas evoluíam, comecei a me sentir mais e mais ansioso, como se algo muito importante estivesse para acontecer, até chegar à última aula do dia – Física 2, onde estudávamos Física Ótica.

O professor havia desenhado um conjunto de lentes de formatos variados no quadro verde, e estava começando suas explicações quando, de repente, eu sabia o que iria acontecer.

Levantei-me e, caminhando quase como hipnotizado, aproximei-me de Leonardo, que como sempre estava sentado na primeira fileira. Por alguns segundos fiquei olhando para sua fronte franzida, como se ele estivesse desenhando mentalmente as lentes e raios, até que, em algum ponto entre seus olhos e o quadro, uma luz começou a brilhar.

Por alguns poucos segundos, a pequena nuvem luminosa cresceu, depois começou a se compactar e tomou a forma de uma lente de gelo, enquanto crescia o alvoroço entre a turma. Mais um pouco e Leo soltou um gemido de exaustão, desmaiando, enquanto a lente caía no chão, estilhaçando-se com um ruído surdo.

Menos de uma hora depois, vídeos gravados por dois celulares de alunos da turma já estavam no Youtube, mas, com a quantidade de vídeos falsos e histórias absurdas circulando diariamente na internet, simplesmente foram engolidos pelo excesso de informações. Eu apareço no canto de um desses vídeos – sou o cara de pé, com jeans rasgados e uma camisa vermelha, que parece estar em transe enquanto olha para a lente se formando.

Quanto aos jornais, a verdade é que a única notícia para eles foi a que um estudante tinha entrado em coma durante a aula e despertado apenas no dia seguinte – ninguém se interessou pelas histórias fantasiosas da turma, supondo ser algum tipo de trote.

Já entre os alunos, inúmeras teorias foram criadas e abandonadas antes mesmo que Leo acordasse. A mais cotada, bem me lembro, era que de alguma forma ele usara seus “poderes mentais” para agregar o vapor d'água do ar (daí a pequena nuvem luminosa) que, sob pressão, mudou de estado até ficar sólido. Agora, como ele havia desenvolvido ou adquirido esses “poderes mentais” ainda era um mistério que continuaria – continua – sem solução.

Provavelmente a história teria caído no esquecimento e se transformado em mais uma lenda urbana, se tudo tivesse acabado por aí.

Mas não acabou.

DIA 2


Dois dias depois eu continuava com aquela sensação estranha, como se não estivesse totalmente acordado.

Na verdade, dizer isso não é preciso. O certo é que, como em um sonho, o tempo parecia “pular”: eu sentia como se nada houvesse acontecido entre o episódio da lente na sala de aula e aquela tarde de quinta. A lembrança de dois dias atrás, estranhamente, era muito mais clara que a do dia anterior.

O trote que vínhamos preparando para os calouros do curso finalmente estava pronto para ser pregado: Fomos à aula de educação física dos calouros, devidamente equipados com “carroças” prontas para a corrida.

Os calouros ficavam encarregados de puxar suas “carroças” – na verdade, plataformas de madeira com rodas de rolimã – por cinquenta metros da pista de corrida do Centro Olímpico da Universidade. A promessa é que aquele que chegasse primeiro seria dispensado dos cortes de cabelo e tintas que seriam aplicados aos demais.

Obviamente, nosso objetivo era não deixar nenhum deles atingir a linha de chegada!

Na pista de corrida, os dez veteranos mais pesados subiram nas carroças e entregaram as cordas para dez “voluntários” puxarem.

Dos dez calouros que começaram a puxar as “carroças”, apenas oito conseguiram tirá-las do lugar. Após cerca de quinze metros, um segundo veterano subiu em cada carroça, e mais quatro desistiram. Mais uns quinze metros e um terceiro veterano subiu, deixando três dos calouros restantes largados ao chão, bufando. Só um continuou, esforçando-se para chegar à linha de chegada, vinte metros à frente.

Um pouco mais à frente, mais um veterano subiu à carroça, se apertando aos demais para caber na apertada prancha de madeira. O calouro, de corpo mediano, se esforçou mais e, animado pela gritaria dos outros calouros, continuou.

Agora, era uma questão de honra não deixar a carroça cruzar a linha de chegada, poucos metros à frente. Como não havia mais espaço na carroça, Pam-Pam – um veterano que, sozinho, pesava mais que quaisquer outros dois juntos – substituiu um dos veteranos sobre a carroça. O garoto bufou, se esforçou e continuou, pé ante pé.

Quando faltavam apenas dois ou três metros, outros dois veteranos se agarraram aos demais sobre a carroça, equilibrando-se para não cair, dispostos a parar o calouro de qualquer jeito. A carroça rangeu e, com um estalo forte, o eixo traseiro quebrou, quase derrubando dois veteranos e forçando o calouro a parar por um instante. Outros veteranos correram para aumentar o peso, fazendo uma algazarra.

Mas o jovem, suando e com o olhar esgazeado fixo na linha de chegada, continuou puxando.

Quando ele finalmente cruzou a linha de chegada, a carroça tinha duas rodas a menos, e quase dez pessoas se equilibravam, umas sobre as outras, na plataforma de madeira. Pelos cálculos que fizemos, alguns dias mais tarde, ele estava arrastando mais de seiscentos quilos sobre a áspera pista de corrida.

Como Jean (esse era o nome do calouro) não tinha nada incomum que saltasse aos olhos – como “superforça” ou algo assim –, na época ninguém ligou esse episódio à materialização da lente em sala de aula dois dias antes. Após a surpresa inicial, sem termos chegado a uma explicação razoável para o que acontecera, as especulações foram deixadas de lado e ele simplesmente virou um herói entre calouros; e mesmo os veteranos respeitaram sua capacidade de não desistir.

Usualmente, ele não tinha força, velocidade ou inteligência além do comum – mas ele sempre conseguia um pouco mais, quando realmente se esforçava. Ninguém pensou que justamente essa capacidade de extrair energia além do limite, quando todos já haviam desistido, era algo além do normal.

Quer dizer, ninguém pensou nisso até a próxima segunda-feira, quando tudo começou a acontecer ao mesmo tempo.

DIA 3


Acho que neste ponto cabe uma digressão, quem sabe algo me vem à mente enquanto tento organizar os pensamentos, resgatando da memória os dias que precederam aquela primeira terça-feira...

Quando tudo começou a acontecer. Era assim que nos referíamos àquela semana quando... bem, quando tudo começou a acontecer!

Conforme os devaneios dos nerds viciados em histórias de ficção científica e em quadrinhos da nossa turma, algo deveria ter acontecido nos dias que precederam a primeira manifestação de “poder” – a criação da lente por Leo. Um meteoro contendo esporos alienígenas teria caído, alguma fenda para outra dimensão teria se aberto ou algum tipo de tempestade cósmica teria atingido a Terra, provocando mutações.

Ainda segundo eles, precisávamos nos precaver, porque em breve apareceriam funcionários do governo tentando nos prender, como se fôssemos algum tipo de ameaça à segurança nacional; ou, quem sabe, um grupo de cientistas de alguma organização desconhecida surgiria para ou justificar o acontecido ou para nos capturar para análise e posterior reprodução de nossas habilidades em larga escala, para vender ao exército do país que pagasse mais.

Bem, até onde eu sei, eles estavam errados em ambas as coisas.

Alguns dias mais tarde, quando descobri o porquê de minha mente estar sempre enevoada e de alguns dias parecerem mais reais que outros, fiz uma pesquisa extensa na internet, em jornais, blogs e até mesmo sites de diversos grupos religiosos e esotéricos. Absolutamente nada diferente aconteceu naqueles dias que precederam a primeira manifestação – pelo menos nada de que a humanidade tivesse se dado conta.

Tentei analisar os alunos das turmas envolvidas, buscando pontos em comum, mas havia gente de toda parte do país, e de outros países, gente que poucas semanas antes vivia a centenas ou milhares de quilômetros de distância. Os estranhos eventos ocorriam apenas com estudantes da UnB, como se algo houvesse sido iniciado daquele ponto, mas o que era, e se ficaria restrito à universidade, ainda não sabíamos.

Quanto ao governo... Bem, eles levaram quase vinte anos para elaborar as primeiras leis sobre a internet; e não seria dessa vez que se tornariam mais ágeis. Nada de cientistas malucos, também, embora diversos de nós tenham demonstrado suas habilidades em diversos laboratórios de universidades e centros de pesquisa do país, quando a área científica finalmente acreditou que não era mais um golpe de mídia.

A mídia... Essa sim, agiu rápido. Em pouco tempo estávamos nos jornais, e já na segunda semana chegavam a nós propostas variadas, desde estrear comerciais e posar para revistas, até o convite para estrelarmos uma versão especial do programa “Big Brother”, em uma casa habitada apenas por pessoas com habilidades especiais.

Mas estou divagando. Divagando sobre o que sei que vai acontecer. O que eu queria dizer é que, naquela segunda, as coisas de repente começaram a acontecer mais rápido.

Logo no início do dia, a Samara – uma bela morena que havia entrado no mesmo semestre que eu – “empurrou” um engraçadinho que estava enchendo sua paciência, sem tocar nele, na área das lanchonetes. O garoto caiu sentado e foi arrastado por uma força invisível por mais de cinco metros, parando próximo a alguns grupos que discutiam os episódios da semana anterior.

Quando uma segunda pessoa – um sujeito que cursava arquitetura, de quem não lembro o nome – descobriu que conseguia influenciar os outros, durante uma partida de truco, alguém levantou a hipótese de que as ocorrências indicavam que algo estava acontecendo em larga escala na universidade.

Bastou a fagulha dessa ideia para uma verdadeira febre se abater sobre todos, cada um buscando, de forma escondida ou explicitamente, descobrir se tinha algum tipo de “poder”.

E de fato alguns outros descobriram que efetivamente conseguiam fazer algo diferente. Nada de coisas “absurdas” (olhe só para mim, falando de absurdo em uma situação dessas!), como fazer o corpo pegar fogo, ficar invisível ou esticar. Mas, definitivamente, coisas fora do normal.

Algum tempo depois, eu e alguns dos outros começamos a perceber um certo padrão nos poderes que se manifestavam, pois todos pareciam de alguma forma associados a faculdades mentais. E, em nossas pesquisas, curiosamente descobrimos que todos os “poderes” pareciam ter precedente entre os milagres atribuídos a “santos” e “gurus” no correr da História.

Mas estou novamente me adiantando. Naquela segunda, que convencionei chamar de “dia 3”, tudo começou.

Mas o que realmente me levou a escrever foram os fatos de hoje; o “dia 4”. O dia em que descobri por que minha mente tem estado enevoada, e o dia em que descobri por que tenho tanta certeza sobre algumas coisas que ainda estão por acontecer.

DIA 4 - Hoje


Hoje, novamente, acordei com aquela estranha sensação de que minha mente estava enevoada.

Tentei me lembrar do dia anterior.

Apesar de o “dia 3” estar bem claro na minha lembrança, precisei de vários minutos me esforçando para tentar recuperar a memória do que ocorrera nas duas semanas seguintes.

Assustei-me quando percebi que dezesseis dias tinham se passado desde aquela segunda-feira. Conferi no relógio, olhando com estranheza a data: quarta feira, 22 de abril de 2009. Mas por que as duas semanas passadas estavam tão enevoadas?

A revelação me chegou como uma luz em um quarto escuro, que cega antes de desvendar. Ainda que eu não soubesse por que, um medo terrível fez doer minha barriga e um calafrio subiu pela espinha, enquanto lágrimas me brotaram nos olhos, sem que eu conseguisse impedir.

Eu estava tentando lembrar para o lado errado! Por isso era tão difícil!

As memórias do futuro me atingiram de forma fragmentária, como se eu estivesse tentando ver algo que continuamente fugisse do meu foco de visão. Quanto mais eu lembrava, maior o medo se tornava, ainda que eu não conseguisse ver ainda o porquê desse medo.

*          *          *

Desisto de ir para a universidade, até porque sinto que não adianta ir lá até que tenha uma ideia clara sobre o que preciso fazer.

Abro a tampa do laptop e começo a escrever, para organizar as ideias, para clarear na mente os últimos dias e quem sabe com isso ajudar a lembrar dos dias que virão.

Às vezes imagino o que os livros de história do futuro vão falar sobre estes dias... No entanto, sempre tenho certeza sobre o que eles não vão falar.

Mas não estou escrevendo para deixar algum registro da época para gerações futuras – até porque não sei se haverá gerações futuras. Nem escrevo por amor à arte de escrever ou qualquer outro motivo nobre, como fazer uma homenagem àqueles que sei que vão morrer ou coisa semelhante.

Não, nada disso. Escrevo para organizar meus pensamentos. Escrevo para coordenar minhas ideias e tentar, com isso, lembrar-me melhor das coisas que virão.

E se com isso algo coerente acabar vazando para o papel e a História, melhor.

Mas escrevo, somente, para sobreviver.

O medo dói em meu estômago enquanto me forço a lembrar dos últimos dias, enquanto me preparo psicologicamente para tentar lembrar dos dias que virão.

Há duas semanas, Pam-Pam, o veterano grandalhão, começou a apresentar estranhos calombos nas costas. Sua mãe o levou a um dermatologista, que verificou que as protuberâncias que se assemelhavam a espinhos eram de um material semelhante às unhas – embora nós achássemos que pareciam mais com pequenos chifres de rinoceronte. Seus cabelos começaram a cair e em uma semana não havia um só pelo em seu corpo. Sua família, assustada, o enviou para uma clínica de oncologia nos Estados Unidos, na esperança de que algum médico possa diagnosticar melhor o que está ocorrendo.

Marco, um calouro que tinha vindo do Rio de Janeiro, estava assistindo a uma aula quando pareceu entrar em transe. Ao fim da classe, quando todos se levantaram para sair, perceberam que ele permaneceu sentado. Alertados já pelos estranhos acontecimentos que vinham ocorrendo, chamaram sua família. Quando seu pai chegou, a turma já havia percebido que ele não estava em transe – apenas se movia muito, muito lentamente. Carregaram-no para uma ambulância e não tivemos notícia dele desde então.

Mas nem todos os casos eram dramáticos. Por exemplo, Míriam, uma nissei extremamente simpática, descobriu que conseguia projetar sua mente com facilidade para qualquer lugar, tendo inclusive visto seus avós no Japão e trazido notícias para sua família. Seus pais estavam orgulhosos, julgando que a “projeção astral”, como chamavam, era uma evidência de que a filha estava transcendendo a matéria e entrando em um estado búdico.

Casos de transes extáticos, empatia, telepatia, bicorporiedade, levitação, transcomunicação, clarividência, transfiguração e outros tantos termos resgatados da literatura religiosa e esotérica pipocavam todos os dias no campus e, embora algumas pessoas tentassem ignorar seus dons e continuar levando vida normal, alguns os viam como pretexto para abandonar totalmente o que faziam e partir em busca de alguma coisa nova.

Estranhamente, mesmo depois de vinte dias desde o episódio com Leonardo na aula de Física Ótica, só os estudantes da UnB eram afetados – nenhum professor, funcionário ou visitante havia demonstrado nada de excepcional.

Ao recordar os fatos das últimas semanas, percebo que não lembro de ter desenvolvido esse dom de lembrar coisas futuras em nenhum momento.

Na verdade, me recordo que minha vida correu de maneira bastante normal nestas últimas semanas, exceto pelo alvoroço que ocorria à minha volta toda vez que alguém começava a levitar, a falar em línguas estranhas ou emitir um halo de luz em volta da cabeça.

Então, compreendo que apenas nos dias em que minhas lembranças estão mais claras – os dias um, dois e três e o dia quatro, hoje – eu realmente lembrei de algo futuro. Mas é mais que isso: nos outros dias, eu nem mesmo me recordava de que havia lembrado de algo futuro!

É quando a verdade, mesmo que ainda incompleta, me atinge com um soco no estômago: minha habilidade não é a de lembrar de coisas futuras como se houvessem acontecido!

Minha habilidade é de projetar minha consciência para dias passados!

Por isso a data me pareceu estranha no início do dia: antes de acordar hoje, eu havia acordado quase dois meses no futuro, em 7 de junho!

Aos poucos, a memória vai retornando, ainda embrenhada em fumaça, e percebo que meu poder não é absoluto: preciso lutar com o cérebro do meu “eu” atual para resgatar as lembranças, sejam do futuro, sejam do passado do dia atual.

Com o medo fazendo subir a bile até minha boca, olho pela janela para o dia que se encerra e finalmente percebo que trouxe duas mensagens bem claras de minhas memórias do futuro:

A primeira, de que algo ruim, muito ruim, vai acontecer caso eu não use as lembranças que ainda não consegui resgatar para mudar determinados fatos do passado.

E a segunda, que tenho apenas sete chances, sete dias onde minha alteração pode fazer diferença.

Lágrimas de medo me escorrem no rosto quando defronto a realidade imutável: o quarto desses dias terminou.

E eu ainda não me recordo do que preciso fazer!



Alexandre Santos Lobão

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Conto de Natal



Meu nome é Severino e tenho 10 anos. Moro num grotão, no interior do Estado... Não importa o nome. Sou brasileiro. Aqui moram 10 famílias e tenho 10 irmãos. Acho que o número 10 me acompanha porque sempre tiro 10 na escola. Pois tem uma escola no meu recanto e a professora anda 10 léguas para chegar aqui. Eu gosto muito de estudar e sou apaixonado com o estudo dos mapas porque eles me mostram que existem mais lugares e pessoas diferentes no mundo. Minha professora é muito sabida. Ela conhece o mundo inteiro viajando pelos mapas. Ela tem muitas fotos de vários países que ela recorta de revistas. Eu nunca vi uma revista, mas me contento com o que ela mostra. Assim, eu conheci o mar, a montanha, as cidades, a neve, os carros, os barcos, os aviões e até homens que voam de cima de uma pedra. É muito legal porque de noite eu fecho os olhos e vejo de novo tudo o que ela mostrou.

Esta semana, a professora falou muito sobre o Natal e mostrou árvores enfeitadas com bolas coloridas, sininhos e estrelas. E tinha até neve. No alto, um anjo de asas abertas sorria pra gente. Ela explicou o que era o Natal, falou do nascimento de um menino pobre numa manjedoura (um lugar onde se põe comida para os animais: as vacas e os bois) e que esse menino tinha vindo ao nosso mundo para salvar os homens. Eu não entendi bem essa parte, mas achei lindo aquele menininho ali junto com os bichos. Ela também explicou que uns reis (homens com coroa na cabeça) levaram presentes para o menininho.

Nossa professora explicou que, hoje, no lugar dos reis, existe um velhinho de barbas brancas, chamado Papai Noel, que dá presentes a crianças no mundo inteiro. E que ele não consegue presentear todas as crianças. Só que ela não explicou isso direito. Eu até vi a foto dele. Parece boa gente. E anda num negócio chamado trenó puxado por uns bichos parecidos com cabras de grandes chifres

Ela inventou uma brincadeira conosco: a gente fechava os olhos e imaginava o velhinho dando presentes para nós; figuras de bicicletas, carrinhos, bolas, bonecas, roupas, sapatos e livros: muitos livros para ler. Fiquei feliz com meu presente: a figura de uma bicicleta. De noite, apaguei a lamparina e sonhei com meu Natal: montado na minha “bicicleta”, fui ao encontro de Papai Noel. Ele me perguntou o que eu queria. E eu respondi que queria de presente uma resposta à minha pergunta: “Você conhece as crianças pobres do Brasil?”


Elba GGomes

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Girassol



Todo mundo me dizia
Que o lindo girassol
Assim era chamado
Porque gostava do sol

Um dia fui conversar
Com aquela flor amarela
- Girassol, conte a verdade
Você gira em torno do sol?

E antes que a flor falasse
Linda como aquarela
O sol saiu de uma nuvem
E respondeu cheio de amor:
- Eu é que acompanho a flor
Pois sou apaixonado por ela

Elba GGomes

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Instantâneos – Momentos de Dor IV


12. De manhã, quando ela abriu o Facebook estava lá a mensagem dele pedindo amizade. Depois de trinta anos, sentiu o mesmo palpitar no coração, o mesmo arrepio na pele. Respirou fundo e apertou a tecla deletar.

13. Ao abrir o livro, cai um recorte de jornal: “Quem encontra um amigo encontra um tesouro”. Volta a sua mente a imagem do pai, de quem herdara o livro: alegre, risonho, bonachão, otimista, generoso, paciente. “Isso era bem dele”, pensa instantaneamente. E sua atual solidão, sua vida amarga, seu isolamento começam a pesar como se fossem uma traição ao que ele sonhara para a vida de sua filha.

14.
Zapeando pelos canais de TV ela deparou com a imagem dele. Tantos anos depois, a mesma fisionomia tranquila que esconde um vulcão submerso, a mesma voz pausada e reticente, as mesmas mãos suaves em gestos moderados, somente os cabelos encanecidos marcam a passagem do tempo. Sua voz, alterada pelos instrumentos eletrônicos, traía um torvelinho interior que somente ela poderia perceber e decifrar. Turbilhão que ela se negou a apaziguar quando eram ainda muito jovens.

15.
Quando as cicatrizes do sofrimento já estavam quase curadas ele telefonou. Tinham passado alguns meses de separação e ela já estava voltando à tona, enfrentando a rotina, experimentando uma pouco de paz. Mas ele telefonou e o redemoinho de emoções invadiu novamente toda a sua mente e o seu coração. Voltava à estaca zero. Quase sem prestar atenção nas suas explicações ela o aceitou novamente como sempre fizera.

16.
Em sua cadeira de balanço, as mãos jogadas sobre o colo, os cabelos brancos amarrados em um coque na nuca, os óculos abandonados na mesa ao lado, ela mentalmente calculou  os anos que tinham se passado desde que o conhecera. Eram mais de quarenta. Entretanto sua imagem permanecia tão nítida e tão vívida como se não tivesse passado nenhuma hora de seu último encontro.


Lucília Garcez

sábado, 30 de novembro de 2013

Comprar ou não comprar, eis a questão!

                                                                                                                                                                                                                             
O Natal está chegando e, para muitas pessoas, é um tempo de estresse: confraternizações, festas e muitas compras! Este pode ser um bom momento para uma reflexão importante: preciso, quero, posso comprar?

Nesta época, a intensidade das propagandas e apelos de consumo cresce. Esses, às vezes, são claros, e outras vezes, subliminares. Para nos sensibilizar, o comércio usa músicas que nos remetem à infância. E utiliza mensagens do tipo: “Demonstre seu amor àquela que tanto cuidou de você – presenteie sua mãe com uma joia! Ela merece!” “Você só começa a pagar no ano que vem!” “Dez vezes sem juros”. “Fique tranquilo! Com o 13º salário você cobre as despesas extras!”

Infelizmente, Natal é tempo de armadilhas também. Especialmente pra quem passou o ano longe de casa, dos filhos, dos pais ou mesmo do cônjuge. A culpa é o “ingrediente perfeito” para um consumo exagerado.

Com a chegada das festas, aparece também uma oportunidade de compensar “tudo o que não foi dado” durante o ano. Afinal, o clima natalino inspira reconciliação, compreensão, amizade... As pessoas esquecem seus desafetos e se confraternizam.

Antes das compras, é interessante se perguntar: “Posso presentear as pessoas? Realmente quero fazê-lo? Qual é a minha verdadeira motivação ao presentear alguém?”. Experimente fugir das obrigações. Se decidir presentear, faça-o direito. Pense no que o futuro presenteado realmente gosta. Senão você corre o risco de dar algo que não tem nada a ver com a pessoa e que vai parar no fundo do armário!

Presentear significa que você quer “se dar de presente” a alguém, de tanto que você gosta dessa pessoa. É isso mesmo que você deseja quando vai presentear? Um presente de verdade é aquilo que é capaz de encher o outro de alegria por ter se sentido lembrado e querido por quem o presenteou. Dar por obrigação não vale a pena.

Algumas pessoas, lamentavelmente, pautam seu valor, bem como a importância que elas têm pro outro, pelos presentes que ganham ou, pior, pelo valor monetário deles. “Presentes caros significam que quem me presenteou gosta muito de mim”. “Presentes baratinhos significam o contrário.” Será que é isso mesmo? Cuidado com os clichês!

Se você pode presentear alguém, faça-o com consciência. Se não pode, experimente exteriorizar o seu carinho e a sua gratidão de outra maneira. Arrisque fazer diferente neste Natal: invista seu 13º e faça um bazar de trocas entre os amigos e a família. Aproveite e separe aquilo que você ganhou no último Natal e de que não gostou. Isso pode agradar alguém, porque os gostos são diferentes. Confeccione cartões expressando seus sentimentos e junte com algo que você mesmo pode fazer em casa. Use sua criatividade e inove. Consumir menos é uma responsabilidade de todos para a preservação do planeta. Pense nisso! E Feliz Natal!


Angélica Rodrigues Santos é psicóloga, professora e supervisora, coautora do livro “Família, afeto e finanças – como colocar cada vez mais dinheiro e amor em seu lar”, com Rogério Olegário do Carmo (Ed. Gente).

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Betes!



“Vou morrer”.
Mas este foi meu segundo pensamento.
A primeira coisa que me veio à mente foi “Ainda existo!”
E o espanto por ainda existir.


O primeiro teste foi bastante simples: projetamos a microcâmera cinco minutos para o futuro, ela permaneceu lá por alguns centésimos de segundo e retornou, trazendo uma foto da parede de fundo do laboratório.  Mais precisamente, ela trouxe do futuro a imagem, previamente definida, que projetamos a partir do quarto minuto. 

Décadas de estudo e quilômetros de equações, e finalmente o teorema basilar da Teoria Unificada das SuperCordas foi provado: era possível, efetivamente, navegar em curvas hipostasiadas pelas soluções de Gödel.  E mais: como Jules Boltzmann, o físico-chefe do CBPF[1], previra, a navegação se dava em sentido oposto ao previsto inicialmente, ou seja, navegava-se para o futuro, e não para o passado.

Desnecessário dizer que foi o evento científico mais divulgado pela mídia e mais acompanhado de manchetes sensacionalistas de que se tem notícia. Mas a equipe de Boltzmann estava focada demais nos próximos passos para prestar atenção nesses detalhes.

E o próximo passo foi justamente tentar validar os postulados de Dolfinger sobre a possibilidade de paradoxos, e a consequente possível construção de um outro universo, com um encadeamento diferente. Boltzmann acreditava firmemente que os paradoxos eram possíveis, mas tanto ele quanto o resto de sua equipe – da qual tive orgulho de participar – acreditávamos em uma abordagem ligeiramente diferente sobre os efeitos resultantes dos paradoxos temporais.

O teste correu em duas etapas. 

Na primeira etapa, a microcâmera foi enviada novamente para o futuro, e trouxe de volta uma sequência de dez fotos de imagens que foram aleatoriamente escolhidas e projetadas pelo computador do Centro. Quando, cinco minutos depois, a câmera apareceu dentro do campo de contenção e o computador sorteou e projetou as mesmas dez imagens a partir de um conjunto de cerca de sete bilhões de imagens possíveis, ficou provado que a estrutura temporal tende a evitar paradoxos.

Na segunda etapa, a microcâmera foi projetada pela terceira vez ao futuro e retornou novamente com dez imagens. Rapidamente, a equipe retirou a câmera da zona de projeção e a ligou ao computador, que removeu as dez imagens do banco de imagens. Quando a câmera apareceu, vinda do passado, o computador apresentou uma nova sequência de imagens, deixando a câmera retornar ao passado com imagens diferentes das que havíamos conseguido cinco minutos antes. No presente, nesse mesmo instante, as imagens armazenadas na câmera passaram a ser as novas imagens.

Nossa equipe festejou muito mais esse segundo teste, pois na verdade o primeiro teste apenas anunciara para o mundo o que já fazíamos há vários anos com táquions, depois com grupos de átomos, depois com nanoconstructos.

O segundo teste, para nós, comprovava que toda a linha de trabalho que vínhamos seguindo há anos era válida, e abria todo um novo horizonte possível de experimentos: se o contínuo de tempo-espaço era flexível e se ajustava às mudanças, poderíamos usar isso a nosso favor!

***

Por motivos diversos, desde o alto custo dos experimentos até o protesto de grupos fanáticos que apregoavam que nossas experiências levariam ao fim do mundo, a próxima projeção demorou quase um ano para ser autorizada. 

Boltzmann em pessoa fez questão de apertar o botão que projetava a microcâmera cerca de dez anos no futuro – o tempo máximo que conseguíamos até então – e a mantinha lá por quase vinte segundos, consumindo energia suficiente para iluminar uma pequena cidade por um mês.

Como planejado pelo físico, a câmera retornou com uma quantidade imensa de informação, enviada pela contraparte futura de nossa equipe: todas as informações, incluindo equações, diagramas e fotos diversas das descobertas do CBPF nos próximos dez anos. Conforme o combinado com a equipe, todo o conhecimento trazido do futuro foi creditado aos seus respectivos futuros descobridores, incluindo diversos trabalhos de físicos que (ainda) não faziam parte da equipe, e mesmo de um estudante que ainda cursava o ensino médio.

O esforço para estudo e aproveitamento do trabalho começou imediatamente; e conforme projeto de lei aprovado meses antes, o dinheiro oriundo das patentes reverteu-se para o Centro até a data de sua descoberta futura, quando passaria então para o descobridor – ou para quem seria o descobridor, caso as informações não tivessem vindo do futuro.

A imprensa, a essa altura, tinha se focado nos benefícios imediatos das “maravilhas vindas do futuro” e em discussões éticas ou religiosas tendo como pano de fundo a viagem temporal; desistindo de qualquer tentativa de entender ou explicar a seus leitores os paradoxos envolvidos nessas viagens ou os detalhes éticos e legais do empreendimento.

Paradoxo ou não, foi o dinheiro dessas patentes que permitiu que Boltzmann criasse em menos de dois anos os protótipos das células de carbono de alta energia, o gerador de fusão controlada e o novo projetor de campo de distorção temporal, com tamanho e autonomia bem maiores que o utilizado nos primeiros experimentos.

E foi aí que tudo deu errado.

***

Na primeira execução, Boltzmann sugeriu que projetássemos um campo vazio, esperando receber algo do futuro. O contrato e as leis se mantiveram as mesmas, com a diferença que agora não receberíamos apenas informações, estando aptos a receber até mesmo modelos de invenções a serem criadas.  Em uma brincadeira estilo “bolão”, cada cientista anotou o que achava que poderíamos receber do futuro, e quem acertasse ou chegasse mais perto levaria o dinheiro apostado por todos. 

As apostas variaram desde “uma versão melhor do projetor de campo”, aposta do próprio Boltzmann, até “vacinas para doenças que iriam aparecer nos próximos anos”, de Fannete-Marie Shelley, francesa que se unira ao grupo no correr dos últimos meses, atraída por uma patente creditada a ela por um trabalho que ela ainda estava pensando em iniciar.

Mas ninguém esperava o que recebemos quando projetamos o campo por trinta segundos, a exatos vinte anos no futuro: quando o efeito fotoelétrico diminuiu e pudemos tirar os óculos de proteção, no centro da sala uma estranha criatura nos encarava, balançando lentamente o corpo e virando a cabeça de lado, enquanto piscava curiosamente os olhos multifacetados.

***

A seção do laboratório onde o campo era projetado era hermeticamente selada, e só foi aberta dois dias depois, quando um novo local para o bizarro ser foi preparado. Homens armados com bastões elétricos e armas, devidamente protegidos por trajes de proteção biológica, encaminharam o ser para um transporte e daí para a seção hospitalar que havia sido incrementada com uma área de isolamento total. A coisa seguiu passivamente, sem oferecer resistência.

A comoção gerada pelo aparecimento da criatura foi grande, e pressão da imprensa e da opinião popular forçou o Centro a paralisar todas as pesquisas até que desse uma explicação definitiva para o aparecimento do suposto animal.

A equipe isolou-se no Centro, então, concentrando seus esforços para decifrar aquela moderna esfinge.

***

A criatura, cujo pelo longo e rosa cobria todo o corpo, foi logo batizada de “Bete”, em homenagem à secretária do Centro, cuja obsessão por roupas e objetos rosa era notória. Os movimentos de seu corpo, em eterno balançar e com os longos braços sempre dobrados, com as mãos quase unidas, lembravam em muito os de um louva-a-deus. Era um bípede, quase se assemelhando a um primata na aparência geral, mas com olhos e um formato de rosto que evocavam um quê do reino dos insetos. Nas raras vezes em que emitia algum som, ele soava como uma série de estalidos gerados pela boca, sem participação da garganta.

Afora as óbvias diferenças externas, seu corpo era estranhamente humano, com pulmões, rins e alguns outros órgãos idênticos aos humanos. O coração era maior e batia cerca de duzentas vezes por minuto, e o cérebro avantajado e complexo sugeria capacidade cognitiva superior à dos primatas.  Estranhamente, o animal parecia assexuado, e alguns órgãos desconhecidos permaneciam inativos em seu corpo, o que levou a uma série de teorias, todas inconclusivas.

O diagnóstico ao fim de seis meses foi que o ser não carregava nenhuma doença e não representava perigo aos humanos. Além disso, era pacífico e obedecia ordens, o que levou a equipe do Centro a sugerir que provavelmente era algum tipo de ser geneticamente modificado para realizar atividades básicas para a sociedade do futuro.

Os cientistas estavam preparando uma apresentação do Bete aberta ao público em geral, para demonstrar que o ser era inofensivo, quando ele escapou, fugindo para o Morro do Pasmado, perto do Centro. Na fuga, ele matou sete pessoas, se movimentando em uma velocidade que as câmeras de segurança mal registraram.

Três meses de buscas infrutíferas depois, um grupo de uma dezena de Betes atacou uma igreja evangélica na favela da Rocinha, matando diversos fiéis e raptando outros tantos.

Um ano após o primeiro ataque, o Rio de Janeiro precisou ser evacuado.

Isso foi há quase dezenove anos. Desde então, a situação piorou em muito.

***

Nós, os remanescentes da equipe original de Boltzmann, com o apoio do que havia restado do governo, gastamos os últimos anos, e muitas vidas, criando e aperfeiçoando um homeotraje – uma roupa semelhante a um traje de mergulho, composta por nanoconstructos que mantêm sua superfície externa exatamente à temperatura ambiente. Como os Betes enxergam apenas na zona dos raios infravermelhos, basicamente ficamos invisíveis para eles. O traje se completa com borracha de alto impacto e isolamento acústico, na tentativa de nos deixar, também, inaudíveis para os monstros.

Com a queda final das linhas de comunicação e dos últimos resquícios de governo, restamos nós três, no laboratório escondido no pico das Agulhas Negras. Com o aproximar da data fatal, fizemos um sorteio, e restaram a mim o homeotraje e a missão suicida.

***

Meus colegas deixaram-me o mais próximo possível do Rio, trafegando por locais que sabíamos ser de pouco interesse para os Betes. Com um pouco de sorte, sobraram apenas algumas dezenas de quilômetros para eu percorrer a pé. A despedida foi calorosa, mas sem lágrimas. Não nos sobraram lágrimas, depois dos últimos anos.

Quanto mais eu me aproximava de Botafogo, mais lentamente eu precisava ir para não ser descoberto. Cheguei a passar um dia inteiro imóvel, escondido em um nicho, com medo até de respirar mais ruidosamente.  Felizmente, a maioria das criaturas dormia de noite, o que me dava uma boa liberdade de movimento com o homeotraje.

Mas mais do que medo, o que senti foi surpresa: os Betes eram muito mais organizados e inteligentes do que pensávamos. Abandonei imediatamente a ideia de que eles eram marginalmente inteligentes quando, escondido, vi pela primeira vez dois deles conversando, as línguas estalando em diversos tons enquanto os braços dançavam em gestos quase humanos.  Quando os vi utilizando instrumentos complexos, tanto alguns que deixamos para trás como outros que não reconheci, percebi que a humanidade estava fadada à extinção.

A menos que minha missão tivesse sucesso.

***

No dia e hora exatos, eu estava lá.

O laboratório do CBPF havia se tornado, aparentemente, o centro de algum tipo de culto dos Betes. As criaturas rosadas, algumas delas se destacando por faixas de pano finamente bordadas em torno da cabeça, circulavam lentamente entre as salas do antigo centro. Eu passara a última semana para conseguir chegar ao laboratório de projeção, e os últimos dois dias sem comer, esperando em um canto escondido.

Duas horas antes do momento certo, dez ou doze das criaturas entraram na sala. Como se soubessem o que iria acontecer – diabos, com certeza sabiam! –, sentaram em um círculo em torno da zona onde, em breve, seria gerado o campo de projeção que conectaria o presente com vinte anos atrás.

Quando faltavam quinze minutos, os Betes começaram a entoar um cântico exótico, enquanto um deles, que tinha uma faixa bordada à cabeça e outra à cintura, se levantou. Lentamente, a criatura removeu as faixas e se aproximou do centro do círculo, ficando à espera.

O cântico soou mais alto, e as criaturas pareceram entrar em uma espécie de transe. A seguir, a sala foi iluminada por um jorro de luz, quando o campo gerado pela minha antiga equipe se formou no centro da sala. O visor do capacete compensou o excesso de luz, permitindo que eu visse o que estava ocorrendo.

O Bete no centro do círculo cumprimentou os demais com um gesto ritualístico, dando um passo e entrando inteiramente na zona de projeção, que iria se desligar em mais vinte e cinco segundos.

Rapidamente, mas evitando barulhos, corri para o campo de projeção e estendi o braço até sua zona limítrofe. A interferência dos metais pesados do traje, como já sabíamos, fez com que o campo entrasse em colapso no momento em que a projeção iria se encerrar.

***

O brilho do campo flutuou e se apagou abruptamente, com um estrondo que indicava que um vácuo se formara na zona de projeção.

Imediatamente, Boltzmann sabia que algo dera errado. O vácuo só ocorreria se a porção do presente projetada para o futuro houvesse, por algum motivo, deixado de existir no presente.

Com efeito, ao retirar os óculos, os cientistas do CBDF constataram que o experimento falhara.

Ninguém ganhou o “bolão”, a imprensa e os grupos radicais alardearam o fracasso, sugerindo motivos diversos.

A equipe do Centro, no entanto, tinha verbas para continuar suas experiências.

Verbas, e tempo.

***

Os postulados de Dolfinger contribuíram decisivamente, anos depois de sua morte, para o estabelecimento da Teoria Unificada das SuperCordas.

Segundo Dolfinger, paradoxos temporais eram possíveis, e suas equações indicavam que os paradoxos geravam universos diferentes, com novos encadeamentos temporais. Infinitos universos, para infinitos paradoxos possíveis.

Jules Boltzmann, por outro lado, criou toda uma nova série de equações que se baseavam na ideia de que não havia nenhum outro universo além do nosso. Seu trabalho se encadeava com as equações de Dolfinger ao estabelecer que valores infinitos e o zero se equivaliam.

Apesar de não havermos conseguido nenhuma prova experimental sobre este ponto específico, todo o trabalho do CBPF se baseava na crença de que as ideias de Boltzmann eram válidas.

Por isso, ao ver que o campo de projeção se desfizera, lançando pequenos pedaços do Bete e de meu braço por todo o laboratório, meu primeiro pensamento foi de surpresa:

“Ainda existo!”
Então, a dor me atingiu e vi os Betes do círculo começarem a se levantar.
E foi quando pensei:
“Vou morrer”.


Alexandre Lobão



[1] Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, situado em Botafogo, no Rio de Janeiro

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Chuchus para Suaçuí


O relógio ainda não dera nove horas, mas o balaio de verduras já estava vazio. Voltei animada para casa, com a certeza do dever cumprido. Oba, já tinha dinheiro para o ingresso da matinê do domingo. A alegria de ver o Tarzan todo lindo pulando de cipó em cipó, acompanhado por Jane e pela macaca Chita, estava garantida. Com um pouco de sorte, talvez o dinheiro desse até para um saquinho de pipocas e um picolé de amendoim, quem sabe?

A animação, contudo, não era completa, pois a venda dos chuchus, os últimos legumes do balaio, sempre os de saída mais difícil, deixara dentro de mim um cantinho sombreado. Como conhecia a clientela, saía de casa bem cedo para oferecer as cabeças de alface, os molhos de couve, salsa, cebolinha, mostarda, acelga e almeirão primeiro, pois murchavam à toa, em sua verde fragilidade. A dona do hotel perto da ponte de cimento via as verduras em primeira mão, e geralmente ficava com as de folhas. Depois era a vez dos tomates graúdos, também bastante disputados. Mas os chuchus, ah, os chuchus, mesmo novinhos e claros ficavam no fundo do balaio, duros de carregar e de vender.

Até sua coleta era difícil, já que a rama que tínhamos na cerca espalhou-se pelo telhado da casa. Mal o dia clareava, mamãe pegava a escada para eu subir e andar de gatinhas sobre as telhas, procurando os frutos que se ocultavam debaixo das folhas, em geral mais bonitos e palatáveis. Fazíamos tudo em silêncio, para que papai não soubesse de nossa estripulia, responsável pela quebra de várias telhas, que volta e meia ele tinha de mandar arrumar.

Minhas andanças pela cidadezinha incluíam a zona boêmia, na época conhecida como “Coreia”, um amontoado de casinhas no final de uma rua central e comprida. Conhecia todas as “meninas”, que me recebiam bem, oferecendo-me broa de milho ou farinha de fubá torrado acompanhada de café, inhame com melado, batata-doce com açúcar e canela e outras iguarias. Mamãe sabia, mas não se opunha – provavelmente confiante na ética das “meninas” em relação a uma criança de nove anos.

Meio ressabiada, eu entrava nas casinhas, só aceitava ir até as cozinhas minúsculas, evitando cuidadosamente os quartos. Que, aliás, eram completamente assépticos e inofensivos à luz do dia, minúsculos eles também, separados do resto da casa por cortinas feitas de tiras de plástico ou de contas de lágrimas, que balançavam quando o vento batia. Só uma vez consegui olhar um quarto por dentro, mas tudo foi tão rápido que vi apenas a lâmpada coberta por algo que me pareceu um lenço vermelho.

As cozinhas tinham fogão de lenha e prateleiras cobertas de folhas de papel de seda recortadas de florezinhas, nas cores azul ou verde. Lembro-me do brilho das panelas e dos limpíssimos tachos de fazer doce. Sobre as chapas dos fogões reinavam os bules esmaltados, cheios de café adoçado com rapadura, ralo demais e com gosto de palha.

Gostava especialmente de uma das moradoras, a Madá, que tinha corpo de violão e lembrava um pouco a atriz Sarita Montiel. Ao contrário da espanhola, tinha voz de taquara rachada, em completo desacordo com suas curvas e sua robustez. Usava um perfume muito forte e saias tão justas que não conseguia sentar-se direito. Era a mais gentil de todas, sempre querendo me agradar.

Naquela manhã, provavelmente de maio ou junho, fazia um frio terrível e eu estava sem paletó. Consegui vender tudo bem cedo, com exceção, é claro, dos chuchus. Meus braços doíam de tanto carregar o balaio, os chuchus branquelos e fresquinhos, ainda com gotas de orvalho, pesavam como pedras. Eu os olhava e tinha vontade de atirá-los rio abaixo. Já estava morta de antipatia do jeito deles, sem cor, sem nenhuma “personalidade leguminosa”, sempre adquirindo o gosto do tempero que a gente põe na panela, coisa mais entojada de vender é impossível. Bati em várias portas, todos que me atendiam diziam que tinham rama em casa; como vender tijolos para oleiros?

Sacudindo o balaio com raiva, mudando-o de braço a cada instante, fui andando depressa até chegar às casas das “meninas”. De novo, a mesma resposta negativa. A casinha de Madá, a penúltima da rua, quase chegando ao pasto, estava com a porta aberta e cheirava a café fresco. Recebeu-me com a mesma alegria de sempre, e disse que viajaria no dia seguinte para Suaçuí, para visitar uma prima. Comprou todos os chuchus, pois a prima, disse, iria adorar o presente, comentando que Suaçuí não era longe e que poderia acomodar os legumes numa bolsa de ráfia.

Voltei pensativa, bem alegrinha com o rolinho de dinheiro na mão, mas achando a ideia da Madá muito estranha. Onde ficaria Santa Maria do Suaçuí? Será que lá não havia chuchus? E essa prima, será que apreciaria mesmo presente tão bizarro?

Uma de minhas irmãs quis dramatizar a história, dizendo que tinha muita pena de Madá, do modo como ela ganhou o dinheiro com que pagou os chuchus. Eu não me importei muito com isso, ou quis não me importar, repetindo, mentalmente, que deveria me preocupar era com os meus braços, que doíam de tanto carregar balaio.

Nunca me esqueci de Suaçuí, cidade que permanece desconhecida para mim. Sei que suas origens remontam à época das entradas e bandeiras. Fernão Dias Paes Leme, o mais ilustre dos bandeirantes, se aventurou pela região em busca de um vale de onde se avistavam, segundo a lenda, rios e areias de ouro, além de árvores com frutas do mesmo metal. Consta que ele ficou encantado com a lindeza da Lagoa de Vapabuçu e da Serra Resplandecente, atualmente chamada Serra do Cruzeiro. Fundado oficialmente em 1920, o município possui aproximadamente quinze mil habitantes. Sua economia é movimentada pelo comércio, pecuária, produção de laticínios e agricultura.

Não sei se a prima da Madá gostou dos chuchus ou se achou o presente a coisa mais sem graça do mundo, como eu teria achado. Contudo, posso afirmar que Suaçuí ficou entranhada em mim, assim como a Madá, as outras “meninas”, o gosto do café ralo, a leveza inesquecível das mãos da mãe ao amarrar os molhos de folhas e o pequeno balaio onde cabiam algumas verduras e todos os sonhos.

Rosângela Vieira Rocha


quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Beleza colorida



A primavera ainda não havia chegado e Brasília já se enfeitava para receber a nova estação. Dá gosto ver por toda a cidade os ipês que se vestem de flores para esperá-la. Aqui e ali eles se mostram como a esperar nossa reação diante de tamanha beleza. Florescem numa paisagem antes castigada pela seca e contrastam com o cinza da grama, dos jardins, dos parques e dos passeios públicos. Na época da secura, a cidade se desnuda e, às vezes, desencanta. Mas falar de desencanto é fácil porquanto agride e fere; já enxergar a beleza perdida entre tantas coisas que compõem a diversidade da paisagem brasiliense requer uma leitura além do concreto, além do horizonte, além do que somente a sensibilidade pode captar. É que nos evoca essa dama – Primavera – trazendo uma florada mágica que oferece à cidade alguns tons de fazer inveja a qualquer artista do pincel e das tintas. É...  sem dúvida, os ipês de Brasília são uma festa para os olhos!

Elba Gomes

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Instantâneos - Momentos de dor (III)


7.
A mesa posta para dois. A melhor porcelana, copos de cristal, toalha de linho branco, flores no centro de prata. O vinho ainda fechado no balde de gelo já derretido. As velas apagadas nos castiçais. O relógio de parede bateu as badaladas indicando meia-noite. Sentada no sofá, ela despertou assustada. Tinha cochilado durante a longa espera. Conferiu a hora. Acendeu as luzes. Começou, então, lentamente, a desarrumar a mesa e a juntar os cacos da sua alma destroçada.

8.
Quando ela entrou no quarto o computador estava ligado. Sentou-se diante da tela e viu que uma mensagem tinha começado a ser escrita. Com certeza ele resolvera ir tomar água na cozinha e deixara por instantes a máquina ligada. Passando os olhos, de repente ela se deu conta de que era uma mensagem de amor... e não era para ela. Havia alguém mais na vida dele. Sua vida dissolveu-se em segundos, como pequenas bolhas de sabão no ar.

9.
No meio da festa, enquanto os convidados caíam na gargalhada depois que, já meio embriagado,  contara uma piada, ela olhou para ele e o viu como realmente era. Uma mistura de desprezo e indiferença invadiu todo o seu corpo, sua mente, sua corrente sanguínea, e ela percebeu que era o fim do amor, que dali em diante não poderia mais viver junto a ele. Já nem sabia mais o que um dia os aproximara. Saiu da sala com o sentimento de que ali não era a sua casa.

10.
A dona da casa e o empregado estavam sentados na varanda olhando o mar. O velho contava a ela o longo e profundo sofrimento de sua mulher com uma doença fatal. Falava de suas noites maldormidas, de suas tentativas de amenizar a dor da companheira, de seu desespero por saber-se inútil e impotente diante da fatalidade, de sua vontade de colocar fim naquela agonia prolongada. Ela entrou na sala em silêncio, abriu uma gaveta e entregou um pequeno vidro azul ao ancião. Ele colocou o veneno mortal no bolso da camisa. Os dois continuaram olhando o mar cinzento sob as nuvens que prenunciavam chuva.

11.
Ela chegava de viagem num voo anterior ao que estava programado inicialmente. Pegou sua bagagem e se dirigiu ao ponto de táxi que ficava além do saguão do aeroporto. Seu coração alvoroçado pela surpresa que pretendia provocar. No trajeto, cruzou com um casal que se abraçava apaixonadamente  numa longa despedida. Imediatamente reconheceu o perfil dele. Perplexa, abaixou os olhos e seguiu adiante, como se aquele não fosse o homem com quem dormiria todas as noites subsequentes de sua vida.

Lucília Garcez

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Sucesso financeiro: suas emoções dão o tom


   
O sucesso é resultado de uma série de fatores: conhecimento, criatividade, ação, experiência, flexibilidade, entre outros. Para ter sucesso, não basta apenas trabalhar; é preciso ter uma visão profunda do seu negócio, enxergar e ir além, pois o sucesso necessita de aprimoramento constante.

O sucesso profissional e financeiro se inicia muito cedo na vida. Começa na infância, com a relação que cada um estabelece com seus pais.

Você foi estimulado a vencer, a enfrentar ou a desistir?

Os pais, com sua forma de ser e de educar, ensinam princípios muito importantes para a vida, inclusive para o manejo das finanças.

Cada indivíduo recebe uma herança biológica e também emocional dos pais. Esse legado familiar se refere a tudo: valores e posturas frente a dinheiro, sexo, amor, higiene, relacionamentos e é ensinado como forma de preservar a vida em comunidade. Pais que não sabiam lidar com dinheiro geralmente ensinam seus filhos a ter dificuldades financeiras; pais prósperos dão um modelo de enriquecimento.

Muitas vezes, a pessoa que recebeu pouco estímulo dos pais consegue buscar o que lhe faltou junto a outros, em instituições ou mesmo na própria vida. Mas ainda assim o peso do modelo é muito grande, pois essa bagagem fica registrada dentro do indivíduo.

Há uma lealdade amorosa dentro da família. Assim, o nível de bem-estar e abundância que cada um constrói na vida está relacionado à zona de conforto dos pais. Dessa forma, a pessoa se sente confortável nessa mesma área. Por exemplo, se seus pais são de classe média, continuar na classe média é algo conhecido e seguro. Ir além, ou seja, tornar-se rico, pode, então, dar medo e gerar ansiedade. Assim, sem perceber, você pode sabotar suas possibilidades de enriquecimento para evitar lidar com essas questões familiares porque, no fundo, todos querem ter uma relação harmônica com o clã.

Uma forma de ter riqueza e saúde é honrar os pais e antepassados, sabendo que eles fizeram o melhor que puderam. E aceitar o passado, seja ele qual for. Honrar esse passado é uma maneira de parar de brigar com o que não pode ser mudado e deixar de gastar energia com isso. A energia, assim, pode ser canalizada para outras coisas e para o sucesso da empreitada que a pessoa deseja realizar. Enriquecer e prosperar significa, no fundo, que os pais foram ótimos pais, porque a partir deles o sujeito pode crescer.

Para ter sucesso financeiro é necessário estar com suas emoções integradas e equilibradas. É importante ainda descobrir os bloqueios internos que possam estar impedindo-o de enriquecer.

Pare e pergunte-se: você sente medo ou ansiedade ao pensar em grandes quantias de dinheiro? Como ficaria seu trabalho, sua relação com a família, amigos, se ficasse milionário? Que reação eles teriam: alegria, contentamento, inveja, raiva, surpresa, medo? Como você lidaria com essas emoções alheias: sentiria prazer, triunfo, culpa, medo?

Se você acha que sua família não lidaria bem com o seu enriquecimento, trabalhe essa questão, pois isso pode estar bloqueando-o para dar saltos na vida.

Construa, primeiramente, uma permissão interna para enriquecer, pois quem se sente capaz e merecedor de riqueza chega lá. Às vezes é só uma questão de tempo. Espero que de pouco tempo!


Angélica Rodrigues Santos (psicóloga, professora e autora do livro “Família, afeto e finanças – como colocar cada vez mais dinheiro e amor em seu lar”, em parceria com Rogério Olegário do Carmo)

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Asas



O champanhe estourou com um som seco, quase um tiro. Roberto Braga, o chefe da Unidade, sorriu sem convicção, encheu a primeira taça e a levantou na direção de todos.

- À nossa aposentadoria!

Os investigadores levantaram suas taças ao mesmo tempo, lentamente, como em uma coreografia melancólica.

A comemoração, se é que poderíamos chamá-la assim, continuou com um burburinho de vozes, quase todas soando desagradadas. Aproximei-me do chefe.

- E aí, Braga? Quer dizer que agora não tem mais volta, mesmo?

Ele levantou as sobrancelhas e fez um gesto de desalento com as mãos.

- Quem me dera, Martelli. O DT-Eye foi utilizado em todos os casos no último ano e provou que é, no mínimo, tão bom quanto nós. E muito mais rápido. A resolução já foi assinada pelo governador; temos um mês para acompanhar os últimos casos, empacotar nossas coisas e fechar o barraco.

- Todo mundo vai ser dispensado?

- Exceto os operadores do sistema, é claro.

Concordei com um aceno de cabeça, levantei o drinque em cumprimento e circulei pela festa com um gosto amargo na boca. Não sabia o que estava fazendo ali, mas tampouco me animei a retornar para casa. Lembranças demais.

Arrastei os passos até o outro lado do salão e joguei-me em minha cadeira, ficando escondido pelas paredes de meia altura do cubículo de trabalho. Era difícil acreditar que, em breve, minha carreira estaria terminada. Vinte e cinco anos de serviço, e pelo menos outros vinte e cinco anos produtivos pela frente... Era muito cedo para qualquer um se aposentar!

Com o peito ainda pesado puxei a lâmina, que estava debaixo de uma pilha de bugigangas, e pressionei no botão embutido na lateral. O vidro ficou leitoso, apresentando os ícones padrão da SecCorp, e cliquei quase por instinto no ícone do DT-Eye.

Na lista de “casos sem acompanhamento” havia um caso, ocorrido às 18h30 e resolvido pelo sistema às 20h30, quando chegaram os resultados da autópsia, menos de um minuto atrás. Segurei o dedo sobre o caso por alguns momentos, e o menu de contexto apareceu.

Acompanhar”.

Automaticamente, o DT-Eye mostrou o andamento do caso em formato de uma história de quadrinhos animados. Uma morte em cinco quadros.

18h00 – Renata Luzes, 29 anos, sai do prédio da Omni NanoCorp, onde trabalhava como nanoengenheira. O vídeo mostrava uma garota que não aparentava mais de 18 anos, andando apressada e com um ar perturbado. O endereço da empresa flutuava sobre a imagem do prédio.

18h20 – A vítima entra no centro de vendas Union SkyMall, claramente perturbada. “Claramente perturbada”. Nunca me acostumaria com as avaliações emocionais feitas pelo DT-Eye. O vídeo mostrava a garota gesticulando e falando sozinha. Cliquei no endereço que aparecia sobre o prédio e selecionei “rota para o quadro anterior”. Dois quarteirões. A vítima deve ter percorrido o espaço a pé, e pela demora deveria estar relutante.

18h25 – A vítima chega ao terraço panorâmico do centro de vendas, ainda mais perturbada. O vídeo mostrava a garota ainda falando, como se discutisse com alguém. Cliquei no ícone de texto e a transcrição do seu monólogo apareceu, um conjunto de argumentos soltos, como se ela estivesse respondendo a uma voz inexistente que, aparentemente, a induzia a fazer algo que não queria.

18h30 – A vítima salta do terraço panorâmico, atingindo o solo 3,5 segundos depois. Dois vídeos dividiam o quadro, um mostrando a garota subindo em uma cesta de reciclagem para atingir o topo da parede de vidro, e outro de longe, a queda vista por alguma câmera de rua.

20h30 – Conclusão do inquérito: Suicídio induzido por comportamento esquizofrênico. Morte por traumatismos múltiplos. Ausência de drogas no sangue e de histórico pessoal ou familiar de esquizofrenia indica provável EISIV. Caso resolvido.

E.I.S.I.V. Esquizofrenia Induzida por Superexposição à Imersão Virtual. Era cada vez mais comum ver cérebros viciados em I.V. falharem ao retornar à realidade, mas algo naquele caso parecia não se encaixar. Olhei novamente o último quadro, uma colagem de fotos do corpo na marquise do SkyMall e da autópsia. Um corpo magro, ligeiramente bronzeado, cabelos negros e curtos.

Balancei a cabeça, negativamente. Talvez eu apenas estivesse incomodado pelas grandes asas tatuadas nas suas costas, que evocavam lembranças que eu preferia manter enterradas.

Desliguei a lâmina e a coloquei no local devido, presa à parede do meu cubículo, talvez pela primeira vez desde que assumira aquele espaço. Suspirei. Teria um mês para arrumar aquela bagunça, mas hoje à noite eu precisava de algo mais forte que champanhe.

*          *          *

Saindo discretamente pelos fundos do salão, fugi para o bar em frente à SecCorp. Algumas caras conhecidas, incluindo alguns colegas da Unidade, se voltaram à minha entrada, mas segui para um canto escuro e cliquei no cardápio, pedindo um uísque duplo com gelo.

A aposentadoria da SecCorp seria suficiente para me manter, com alguma folga para eventuais luxos. Não que eu os tivesse. Mas o que me incomodava era o sentimento de inutilidade, a ideia de que metade de minha vida tinha sido aplicada em uma cruzada dispensável, substituível por uma I.A. provavelmente programada por outras I.A.s. Se eu ainda tivesse uma família, quem sabe...

Afoguei esta linha de pensamentos terminando o copo em um só gole. Uma careta, um clique, mais um uísque.

A luz direcionada sobre a mesa iluminou o novo copo e projetou uma sombra alaranjada sobre o tampo claro. Olhei por alguns instantes para a bebida, tentando descobrir o que estava errado. Só então percebi que o uísque estava mais escuro, eu havia esquecido de selecionar o gelo no pedido...

De repente, ficou claro o que não se encaixava naquele caso de suicídio. Pressionei o polegar no canto do menu confirmando o pagamento e saí de volta à SecCorp sem tocar na segunda bebida.

*          *          *

De volta ao cubículo, recarreguei o caso e cliquei no último quadro. O quadro se expandiu e tomou toda a superfície da lâmina, trazendo dados técnicos da autópsia na barra à esquerda e as fotos à direita. Deslizei diversas fotos para o lado até descobrir uma que mostrava a vítima, de costas.

Aproximei a foto, e verifiquei que minhas suspeitas estavam certas: o que me incomodara antes é que a vítima, Renata Luzes, não tinha a cor certa. As asas em suas costas eram claras, mas os braços e a parte da pele em volta do pescoço eram mais escuros, indicando que ela saía de casa com frequência suficiente para se bronzear, o que absolutamente não combinava com o perfil dos viciados em I.V.

Além disso, executando o vídeo a partir do momento da foto, confirmei que a tatuagem não brilhava nem se movia. Definitivamente, uma tatuagem retrô não combinava com um tecnoviciado.

“Evidências circunstanciais, se tivermos a boa vontade de chamar isso de evidências” – eu podia até imaginar o Braga me sacaneando – “deixe essa coisa de lado, para que estragar a festa de sua promissora aposentadoria com um pouco de trabalho?”

Ri da ironia e comecei a me aprofundar nos detalhes do caso. A autópsia revelava níveis maiores que o comum de bismuto, grapheno e germânio no sangue. Restos de nanos? Bem, isso poderia ser comum se ela tivesse sofrido alguma nanocirurgia recentemente, o que me levou ao seu histórico médico. Como ele não indicava nenhuma nanocirurgia, solicitei que o scanner da autópsia realizasse uma análise mais específica, procurando por sinais de nanoalterações realizadas recentemente.

O modelo 3D mostrou o corpo em azul, com pontos vermelhos nos dois olhos e ambos os ouvidos. Novamente no histórico médico, não localizei nenhum tipo de deficiência visual ou auditiva.

Seguindo a pista, ainda que tênue, solicitei comparação de imagens do rosto da garota de três meses antes (mais do que isso e os sinais dos nanos já teriam se dispersado) com as atuais. Virei os rostos em 3D de um lado para outro, aproximei as imagens, mas o resultado foi nulo: tanto olhos quanto orelhas não haviam sofrido nenhuma alteração cosmética.

Por que diabos, então, ela teria passado por uma cirurgia? Registrei o comentário e retornei à tela principal.

Comecei a me aprofundar em suas atividades. Nanoengenheira, ela trabalhava na divisão de pesquisas da Omni NanoCorp. Teria ela sido cobaia de algum tipo de testes? Isso não fazia sentido.

Selecionei então os registros de segurança da empresa dos últimos três meses, e procurei todas as ocorrências associadas à vítima.

Mais algumas filtragens e sobraram cerca de vinte operações de acesso negado. Renata havia tentado acessar o conteúdo de outra área da empresa, por diversas vezes e sem sucesso. No registro de sua última tentativa, verifiquei que ela havia vencido as duas barreiras virtuais de isolamento, mas não conseguira listar ou copiar nenhum conteúdo devido ao protocolo de segurança.

Recuperei os logs de acesso posteriores, e verifiquei que em nenhum momento ela conseguira acesso total às informações que procurava. Pouco depois das tentativas, seu login mudara, indicando que ela fora transferida para outro departamento.

Espionagem industrial? Aos poucos, um motivo para crises de consciência, ou mesmo para um assassinato, começava a se delinear. Mas ainda era muito pouco. Eu precisava saber se o segredo que Renata tentara acessar valia o suficiente para que desejassem silenciar alguém que chegara perto demais de descobri-lo.

Registrei os dados e meus comentários e segui adiante.

Meu próximo passo foi entrar na rede privada da Omni e tentar acessar a área segura.

Acesso negado.

Olhei por cima do cubículo e conferi que alguns colegas continuavam na festa de aposentadoria da Unidade, mas nenhum dava atenção à área dos cubículos de trabalho onde eu estava.

Entrei então com o login privilegiado da SecCorp, o que – teoricamente – apenas o chefe da Unidade poderia fazer.

Acesso negado.

Agora eu finalmente tinha uma evidência real de que algo estava errado na Omni NanoCorp. Por lei, toda informação deveria estar disponível para os logins privilegiados das Corporações de Segurança, e se eles tinham algo a esconder, talvez esse algo fosse grande o suficiente para que desejassem silenciar qualquer curioso.

Não que isso fosse um problema para mim.

Acessei o DT-Eye e solicitei a abertura de um novo processo de investigação, com quebra do sigilo indevido que infringia a lei da livre informação. Com o endereço registrado, o sistema levou alguns milésimos de segundo para verificar que a denúncia procedia, e menos de dez segundos para, usando o poder de computação em rede do Governo, conseguir o acesso às informações.

Com certeza, em algum lugar da Omni NanoCorp os alarmes devem ter soado, e técnicos já deveriam estar correndo para descobrir o que provocara o vazamento de informações. Mas era tarde demais: em minha lâmina, listas de projetos de nanos, modelos e relatórios eram rapidamente analisados, agrupados por assuntos e salvos no servidor da SecCorp como evidências.

No centro da nuvem de informações, resultante da análise dos documentos, duas palavras se destacavam: nanoconstructos sensoativos.

Um frio percorreu minha espinha, ao lembrar da onda de suicídios coletivos quinze anos antes, provocada por nanoconstructos que injetavam propagandas diretamente nos nervos óticos e auditivos e que culminou na proibição em todo globo de nanos que alterassem os sentidos.

Logo abaixo, na nuvem de palavras e imagens, saltavam aos olhos as palavras militar e restrito. Clicando em “militar” para torná-lo centro de uma nova nuvem, apareceram não apenas os nomes de duas agências de inteligência do governo, mas também uma dúzia de outros nomes, alguns de agências similares em outros países, e outros totalmente desconhecidos para mim. Com certeza a sujeira na Omni NanoCorp era grande.

Como a invasão aos dados havia sido coordenada pelo DT-Eye, a abertura do processo ocorreu automaticamente, e com uma confirmação liberei a expedição das ordens de restrição de bens e de acesso a informações para todos os envolvidos naquele projeto.

Mas ainda não era isso que eu estava procurando.

Retornei ao caso de Renata Luzes e vinculei o processo de investigação de dados recém-aberto como evidência, incluindo meus comentários.

Apesar de as evidências levarem a uma única conclusão, faltava ainda uma prova não circunstancial de que o suicídio dela havia sido induzido pela empresa.

Da lâmina, fiz nova solicitação ao scanner de autópsia, desta vez para realizar uma pesquisa por nanos remanescentes. Normalmente os nanos se autodestruíam automaticamente após seu uso, e seus restos eram eliminados naturalmente pelo corpo. No entanto, considerando que eram usados milhares, por vezes milhões de nanos em uma única operação, era comum que alguns apresentassem defeito e ficassem simplesmente inativos, presos a algum tecido ou vagando pelo corpo.

Dez minutos depois, o scanner havia detectado três nanos inativos nos olhos e sete nos ouvidos, o suficiente para uma engenharia reversa. Mais quinze minutos, e a análise microscópica de sua estrutura revelava a frequência que estavam pré-programados para responder.

“Peguei vocês, seus filhos da mãe!”

Registrei os nanos e a frequência como evidências no caso de Renata e retornei à tela inicial da lâmina, entrando agora no SAT – Sistema de Análise de Transmissões. Indiquei a localização do SkyMall, a hora da morte e a frequência a ser analisada.

O sistema demorou alguns instantes para recuperar os registros das transmissões das bases do SkyMall, e pouco mais que isso para decodificá-las.

Abri novamente o caso de Renata e mandei sobrepor as mensagens e imagens gravadas ao vídeo do terraço panorâmico, onde ela parecia conversar sozinha. O diálogo se completou perfeitamente, com a imagem de uma senhora, ligeiramente fora de foco e vista de um ângulo diferente do gravado pela câmera, conversando com a pobre garota.

“Você nunca prestou para nada, mesmo!”

“Mas, mãe...”

“Não tem mas nem meio mas. Você arruinou minha vida, abandonei tudo o que eu queria ser por você, e no fim, o que você faz? Me deixa para morrer abandonada!”

“Mãe, você nunca disse que se sentia solitária!”

“E é preciso dizer? Morri sozinha em casa, sem alguém até mesmo para segurar minha mão!”

“Mãe, para com isso! Eu não quero morrer!”

“Eu também não queria, querida. Mas agora podemos ficar juntas. Venha comigo e prometo cuidar de você...”

A raiva pintou de vermelho minha visão, e parei a execução do vídeo. Os animais haviam atormentado a garota até que ela se matasse, usando traumas e lembranças da mãe dela!

Olhei para aquele rosto de menina, congelado em um momento de desespero em um dos quadros do processo. Quanto tempo será que ela sofreu aquela tortura psicológica, até finalmente quebrar?

Vinte e cinco anos de trabalho, e ainda assim precisei respirar fundo para engolir a revolta com aquele caso.

Fechei o vídeo superposto e salvei-o como mais uma evidência.

Retornei à tela inicial do DT-Eye. Segurei o dedo sobre o caso de Renata e no menu de contexto que apareceu selecionei “Corrigir conclusão”.

Tem certeza?

Sim. Era a primeira correção de um veredicto do sistema, desde seu lançamento, um ano atrás.

No espaço para o “Nova conclusão” preenchi “Homicídio”.

Para o campo de “Provável culpado” arrastei os nomes dos executivos do organograma da Omni NanoCorp, desde o presidente até o chefe do departamento que conduzia a pesquisa com nanos sensoativos.

Confirma múltiplos culpados?”

Sim.

Adicionei os registros de provas e evidências que havia coletado e mandei o sistema validar o novo resultado das investigações.

O DT-Eye analisou as evidências, cruzou com as informações do outro processo que eu abrira e confirmou minhas conclusões.

Nova conclusão aprovada. Acusação de homicídio adicionada às acusações de infrações informacionais e de produção ilegal de constructos sensoativos.

Pressionei o botão de “ok” e, para minha surpresa, mais uma tela apareceu, com um vídeo do chefe do departamento de desenvolvimento de sistemas.

Como forma de melhorar o DT-Eye, gostaríamos de seu depoimento sobre a investigação realizada, respondendo a uma questão: O que o levou a discordar da conclusão do sistema e aprofundar as investigações? Pressione ok para iniciar a gravação.

Melhorar o sistema, depois de ele acabar com nossa Unidade?

Pressionei “Ok” e mostrei meu melhor sorriso irônico, olhando direto para o centro da lâmina.

“Pode chamar de instinto ou pode chamar de palpite. Quando vocês conseguirem programar isso em uma I.A., aí poderão nos dispensar com a consciência mais tranquila. Até lá, boa sorte.”

Apertei o botão novamente para finalizar a gravação. Olhei para o relógio em meu cubículo: 22h15.

O DT-Eye demorara duas horas para resolver o caso.

Eu demorei quinze minutos a menos para concluir a investigação que não apenas corrigiu sua conclusão e fez justiça à pobre menina de asas, mas também minou a credibilidade que o sistema levara um ano para construir.

Com um sorriso lembrei que, além disso, ainda tivera tempo para um uísque.

Nada mal para um investigador prestes a se aposentar.



Alexandre Lobão